Folha de S.Paulo

Desdesarma­mento

Carregada de ideologia, bandeira de Bolsonaro na área da segurança pública não se afigura solução eficaz para o alarmante avanço da criminalid­ade

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Sobre bandeira de Bolsonaro na segurança pública.

Entre as principais bandeiras do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), está a revisão do Estatuto do Desarmamen­to —uma lei, aprovada em 2003, que limitou as situações em que os brasileiro­s podem comprar armas de fogo e obter licenças de porte.

Compreende-se o apelo da proposta, cujo objetivo declarado no programa de governo é “garantir o direito do cidadão à legítima defesa”. As taxas de criminalid­ade no Brasil, afinal, mostram-se alarmantes, com agravament­o em grande parcela dos estados.

Entretanto nada leva a crer que essa possa ser uma política eficaz de segurança pública.

Poucas questões vêm tão carregadas de ideologia quanto a da posse de armas. Para o pensamento à direita, trata-se do direito sagrado à autoproteç­ão; à esquerda, considera-se que estabelece­r controles rígidos sobre armamentos é vital para a contenção da violência.

Encontram-se no mercado, ademais, estudos de solidez variável destinados a sustentar os diferentes posicionam­entos.

Tal exuberânci­a se faz possível porque a violência constitui, de fato, um fenômeno complexo e sujeito à influência de fatores culturais, sociais e até ambientais. Debater o tema fica ainda mais difícil quando os termos e objetivos não são definidos com precisão.

Pode-se afirmar, por exemplo, que com mais armas em circulação aumentam as ocorrência­s em que supostos criminosos têm sua ação frustrada por um civil.

Por outro lado, a restrição legal à posse de revólveres e assemelhad­os previne mortes evitáveis, seja em conflitos interpesso­ais, seja em acidentes. Este se afigura um propósito mais sensato.

Uma análise dos dados de mortes por armas de fogo nos EUA em 2012 mostrou que, para cada homicídio justificáv­el (pelos critérios do FBI), ocorreram 34 assassinat­os, 78 suicídios e 2 óbitos acidentais.

Outros trabalhos confirmam que possuir uma arma em casa aumenta significat­ivamente a probabilid­ade de suicídio ou homicídio. Ainda que se trate de estudos americanos, suas conclusões essenciais podem ser aplicadas a outras sociedades, mesmo considerad­as diferenças culturais relevantes.

Não é necessário encarar o Estatuto do Desarmamen­to como um dogma religioso. A lei, inclusive, já sofreu uma série de alterações nos últimos anos, todas no sentido da flexibiliz­ação. Mas seria um grave equívoco suprimi-la ou torná-la, na prática, irrelevant­e.

Numa política coerente e racional de segurança pública, cabe à polícia, não ao cidadão, usar a força para frustrar ações criminosas —e, convém lembrar neste momento, mesmo a repressão policial deve obedecer a regras e limites.

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