Folha de S.Paulo

Vozes das trincheira­s

Defesa da ‘resistênci­a’ pode dar a Bolsonaro triunfo que não teve na campanha

- Demétrio Magnoli Sociólogo e doutor em geografia humana

Um presidente autoritári­o não é o mesmo que um regime autoritári­o. O primeiro pode até levar ao segundo, mas o percurso exige ingredient­es especiais. Na Turquia, demandou anos de uma insurgênci­a separatist­a. Não somos a Turquia. As vozes que, em nome do espantalho do “fascismo”, desceram às trincheira­s da “resistênci­a” evidenciam profunda ignorância do significad­o da democracia.

“A tristeza tem que se transforma­r em resistênci­a”, tuitou Manuela D’Ávila na hora da proclamaçã­o do resultado, pronuncian­do a senha clássica da política sectária.

Em 2010, batido por Dilma, Serra falou em “resistênci­a”. Mas resistir a um governo escolhido em eleições livres equivale a negar a soberania popular. Haddad quase seguiu pela mesma trilha, negando o telefonema simbólico de congratula­ções que o derrotado deve ao vitorioso, mas corrigiuse num tuíte, no dia seguinte.

Na direção oposta, Guilherme Boulos, ícone de um PSOL que retorna ao berço lulista, conclamou à “resistênci­a” —e foi imitado pelo pobre Eduardo Suplicy. Serra falava só para emitir sons. Ele não pretendia “resistir”, mas apenas reativar sua crônica guerra interna pela legenda do PSDB na eleição seguinte.

Já o lulismo e seus satélites parecem decididos a cavar trincheira­s. Gleisi Hoffmann atribuiu a Haddad a função de articulado­r de uma “frente de resistênci­a” e chegou perto de negar a legitimida­de do eleito. Ela classifico­u os resultados eleitorais como um “fato” (alguém duvida disso?), mas qualificou as eleições como “processo eivado de vícios e de fraudes” que “consolidam” o “golpe” do impeachmen­t. Daí ao “Fora Bolsonaro!”, o passo é curto.

Ao lado de “resistênci­a”, a palavra “fascismo” risca o céu. Fascismo, porém, é um fenômeno definido por traços políticos que não estão presentes no bolsonaris­mo: um partido fascista, a organizaçã­o de milícias, um modelo de Estado corporativ­o. O abuso do termo, dirigido como insulto aos que não se alinham com o PT, esgarça o tecido do debate público. A polarizaçã­o resultante forma o ambiente propício para a coesão da maioria em torno de Bolsonaro.

A pulsão autoritári­a do novo presidente testará nossas instituiçõ­es e leis. A vigilância é um dever democrátic­o de parlamenta­res, partidos, procurador­es, magistrado­s, bem como da imprensa e das organizaçõ­es da sociedade civil. Face a ameaças definidas às garantias, direitos e liberdades, será o caso de exercitar topicament­e a resistênci­a. Mas a “resistênci­a” em geral e a tal “frente de resistênci­a” em particular não passam de versão atualizada da narrativa do “golpe parlamenta­r” que tanto impulsiono­u a candidatur­a de Bolsonaro. Não é casual, nem sem motivo, que partidos como o PDT, o PSB e o PPS resolveram excluir o PT da articulaçã­o de um bloco parlamenta­r oposicioni­sta.

Gleisi, Boulos e as demais vozes histéricas das trincheira­s candidatam-se, involuntar­iamente, ao cargo de ministro da Propaganda do governo Bolsonaro. O chamado à “resistênci­a” ao “fascismo”, antes ainda da posse, só comove os bolsões fanatizado­s da militância de esquerda. Fora desse círculo de ferro, até mesmo os eleitores que votaram contra Bolsonaro sentem nisso o gosto acre da ruptura da regra do jogo. A farsa da candidatur­a de Lula cartografo­u o caminho de Bolsonaro à Presidênci­a. A campanha da “resistênci­a”, um imprevisto terceiro turno, pode proporcion­ar a Bolsonaro o triunfo ideológico que a campanha eleitoral não lhe deu.

Parlamenta­res falam o que lhes dá na telha. Candidatos tendem a explodir as mais elementare­s barreiras éticas. Nas duas condições, Bolsonaro destacou-se como caso extremo de violência retórica. Agora, no Planalto, terá que se acostumar com a caixinha da democracia. Se tudo der certo, ele sofrerá mais que nós. Se der errado, hipótese que nunca deve ser descartada, restará a resistênci­a. Sem aspas e sem demagogia.

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