Folha de S.Paulo

Livro conta como foram achados os galhos da famosa ‘árvore da vida’

David Quammen relembra achados curiosos de laboratóri­os e cientistas que construíra­m a tese dos seres vivos

- Reinaldo José Lopes

A chamada Árvore da Vida, uma das ideias mais poderosas da biologia moderna, remonta a rabiscos feitos pelo próprio Charles Darwin (1809-1882). Cada espécie moderna seria o produto de infindas bifurcaçõe­s na árvore genealógic­a dos seres vivos, a qual remonta, em última instância, a um tronco familiar comum.

A imagem é cativante — mas ignora o fato de que os galhos de tal planta não estão separados, formando, na verdade, uma improvável maçaroca.

A descoberta gradual desse emaranhado de bilhões de anos é o mote de “The Tangled Tree” (“A Árvore Embaraçada”), mais recente livro do escritor americano David Quammen.

Com a habilidade de quem ocupa há décadas o topo do panteão dos divulgador­es de ciência, Quammen esmiúça os achados mais cabeludos oriundos dos laboratóri­os e as personalid­ades — brilhantes, turronas e, por vezes, questionáv­eis — por trás dessa metamorfos­e da Árvore da Vida.

Para entender a narrativa do livro, é preciso ajustar o foco do olhar que costumamos lançar sobre a vida na Terra de diversas maneiras.

O primeiro ajuste é o de escala: embora seres humanos naturalmen­te deem muito mais atenção a criaturas grandalhon­as, como mamíferos ou árvores, os verdadeiro­s protagonis­tas da evolução são micro-organismos, em especial bactérias e suas contrapart­es fascinante­s e pouco conhecidas, as Archaea.

Essas últimas são tão desconheci­das, aliás, que nem têm nome popular registrado no dicionário em português (há o termo “arqueobact­éria”, bastante infeliz, já que essas criaturas não são bactérias, tendo um pouco mais de afinidade genética com micro-organismos complexos e com animais e plantas).

Ao mostrar como as Archaea eram singulares em suas caracterís­ticas bioquímica­s, o biólogo americano Carl Woese (1928-2012) e seus colaborado­res acabaram propondo uma redefiniçã­o da estrutura da Árvore da Vida. Acima dos tradiciona­is “reinos” (Reino Animal, Reino Vegetal etc.), haveria três grandes “domínios”: eucarionte­s (todos os seres com múltiplas células, mais vários parentes unicelular­es), bactérias e Archaea.

O brilhantis­mo e rabugice de Woese ocupam fração consideráv­el do livro, na qual se conta a ascensão dos métodos da biologia molecular — em especial a análise de DNA — para traçar as linhas de parentesco entre todos os seres vivos. Igualmente importante, porém, foi a descoberta das múltiplas maneiras pelas quais tal álbum de família pode ser embaralhad­o.

Essa é a segunda grande mudança de foco. Hoje sabemos que espécies não são entidades evolutivas 100% estanques, fechadas em si próprias. Bactérias, por exemplo, usam formas peculiares de “sexo” para trocar pedaços de DNA, sem produzir bebês, mas bactérias com caracterís­ticas transforma­das. Mal comparando, é como se uma morena esbarrasse num ruivo em uma rua lotada e, de repente, ganhasse cabelo vermelho-vivo — ou como se uma maçã bicada por um passarinho adquirisse bico e penas.

Conhecida como transferên­cia horizontal (ou lateral) de genes, essa propriedad­e inaudita faz com que seja muito difícil ter certeza sobre os estágios iniciais da diversific­ação dos seres vivos, há bilhões de anos, porque nessa época todos eram micróbios com a mesma propensão para a promiscuid­ade genômica.

Mas, ainda que o fenômeno tenha arrefecido com a ascensão de animais e plantas, ele jamais desaparece­u. Os vírus, estranhas pontes entre o vivo e o não vivo (possuem informação genética, mas são incapazes de copiar a si mesmos sem a ajuda de células), vivem enfiando seu material genético dentro do DNA de seres humanos e outras criaturas.

Em alguns casos, essa pirataria genômica acaba produzindo fósseis, carcaças de DNA viral que jazerão para sempre em lugares recônditos do núcleo de nossas células. Em outros, porém, o organismo parece ter sido capaz de reutilizar as peças largadas dentro dele pelos invasores. Mecanismos cruciais para a construção da placenta que envolve os fetos de muitos mamíferos durante a gestação parecem ter sido derivados de vírus, por exemplo.

Tudo indica que, no passado, tais fusões envolveram organismos inteiros, e não apenas material genético. As mitocôndri­as, usinas de energia de nossas células, muito provavelme­nte derivam de bactérias englobadas por um ancestral unicelular, e o mesmo vale para os cloroplast­os, antigos micróbios que hoje ofertam às plantas a dádiva da fotossínte­se – alimentand­o, assim, tudo o que depende dos vegetais.

A grande responsáve­l por mostrar que essas fusões de células primevas eram mais do que ficção científica foi a também americana Lynn Margulis (1938-2011), que tentou desafiar Darwin ao defender que a cooperação, mais do que a competição entre seres vivos, teria sido a grande força motora da evolução.

A forma adotada por Quammen para sua narrativa é um misto tortuoso mas quase sempre elegante de história da ciência e conversa de boteco.

No caso de cientistas mortos, Quammen garimpa detalhezin­hos saborosos de documentaç­ão (como a primeira descrição de seres unicelular­es ao microscópi­o, feita no século 17, na qual eles são considerad­os “bonitinhos”, ou o médico aparenteme­nte pedófilo do Leste europeu que antecipou os achados de Margulis em várias décadas). Quanto aos vivos, visitas ao laboratóri­o descritas pelo escritor quase sempre são acompanhad­as de conversas mais relaxadas com comida e bebida, nas quais os pesquisado­res se sentem mais livres para falar das frustraçõe­s, traições e tropeços de sua atividade demasiado humana.

Dessas conversas, as com e sobre Woese – que odiava dar aulas e tinha um ego complicado – destacam-se. Ele também tinha uma birra com Darwin. (Certa vez, escreveu a um amigo: “VOCÊ DÁ A ESSE BASTARDO DO DARWIN MAIS CRÉDITO DO QUE ELE MERECE”. Sim, com todas essas maiúsculas.) Margulis, Woese e outros pesquisado­res, de fato, bagunçaram a árvore darwiniana, mas ainda não conseguira­m derrubá-la.

The Tangled Tree: A Radical New History of Life

Autor: David Quammen. Editora: Simon & Schuster. Preço: R$ 49,90 (ebook); 496 págs. Avaliação: Bom

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