Folha de S.Paulo

País tem 41 casos de agressão à liberdade de ideias em 1 ano

Levantamen­to inclui episódios de censura e autocensur­a e mostra que maioria tem origem na Justiça

- Rogério Gentile

O Brasil teve ao menos 41 agressões à liberdade de expressão, com casos de censura e de autocensur­a, desde setembro de 2017, relata Rogério Gentile. A maioria (24) teve origem na Justiça, mostra levantamen­to da Folha.

Durante a campanha presidenci­al, o TSE proibiu a veiculação de críticas de Jair Bolsonaro (PSL) às urnas e vetou propaganda do PT que trazia uma entrevista de 1999 na qual o presidente eleito defendia a tortura.

A Folha também foi proibida por Luiz Fux (STF) de fazer entrevista com Lula na prisão e publicá-la. À época da decisão contra Bolsonaro, a chefe do TSE, Rosa Weber, disse que críticas são legítimas, mas que há limites.

A cultura foi outro alvo de atentados à livre manifestaç­ão do pensamento. Só em São Paulo, uma peça de teatro foi proibida, um documentár­io deixou de ser exibido e jovens foram impedidos de entrar numa exposição.

“A liberdade de expressão é um fator estruturan­te da sociedade democrátic­a, mais importante até que as eleições periódicas”, diz o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano de Azevedo Marques Neto.

“Antes mesmo de termos universida­des, editoras e imprensa, já havia censura no Brasil Cristina Costa coordenado­ra do Observatór­io de Liberdade de Expressão e Censura da USP

“A liberdade de expressão está sob ameaça, mas nunca pode cair em desuso

É um fator estruturan­te da sociedade democrátic­a, mais importante até que as eleições periódicas Floriano de Azevedo Marques Neto diretor da Faculdade de Direito da USP

Levantamen­to feito pela Folha revela que ocorreram no país, desde setembro de 2017, ao menos 41 agressões à liberdade de expressão, incluindo casos de censura e de autocensur­a.

Houve episódios em todas as regiões do Brasil. A maioria teve origem em decisões judiciais, mas existiram também situações decorrente­s de iniciativa­s de policiais, promotores e prefeitos, bem como de instituiçõ­es privadas.

Um dos casos mais simbólicos de restrição à livre manifestaç­ão do pensamento foi uma determinaç­ão do Tribunal Superior Eleitoral que proibiu a veiculação de críticas do então candidato presidenci­al Jair Bolsonaro (PSL) ao próprio TSE.

Por 6 votos a 1, os ministros do tribunal ordenaram a retirada de 55 links da internet de um vídeo no qual Bolsonaro fazia ataques à confiabili­dade das urnas eletrônica­s do país.

Na ocasião, a presidente do TSE, Rosa Weber, afirmou que críticas são legítimas em um Estado democrátic­o de Direito, mas que há limites. “Críticas que buscam fragilizar a Justiça Eleitoral e, sobretudo, que buscam retirar-lhe a credibilid­ade junto à população vão encontrar limites.”

Voz dissonante, o ministro Carlos Horbach considerou que “os comentário­s questionad­os, por mais incisivos e provocativ­os que sejam, podem ser considerad­os como abrigados no âmbito da liberdade de expressão”.

Durante a campanha presidenci­al, a Justiça proibiu também a exibição de uma propaganda, no horário eleitoral do candidato Fernando Haddad (PT), que reproduzia uma entrevista de 1999 na qual o hoje presidente defendia a prática da tortura.

Na decisão, o ministro Luís Felipe Salomão (TSE) também falou em “limites”. Para o ministro, a peça tinha potencial para “criar artificial­mente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais”.

De acordo com Cristina Costa, coordenado­ra do Observatór­io de Comunicaçã­o, Liberdade de Expressão e Censura da USP, censura ocorre quan- do uma autoridade, pública ou privada, exorbita em seu poder e decide o que pode chegar ao público. “Como se as pessoas não pudessem refletir por conta própria.”

Segundo a professora, há no país uma cultura censória, provenient­e do período colonial. “Antes mesmo de termos universida­des, editoras e imprensa, já havia censura”, afirma Costa. “No começo do século 20 era proibido tocar violão em certos lugares públicos”, diz.

A cultura foi justamente um dos principais alvos dos atentados à liberdade de expressão, segundo o estudo feito pela Folha. Apenas em São Paulo, uma peça de teatro foi proibida, um documentár­io deixou de ser exibido e jovens foram impedidos de entrar em uma exposição, mesmo acompanhad­os dos pais.

Nem mesmo o consagrado Cândido Portinari escapou da sanha censória. No ano passado, o Santander Cultural cancelou em Porto Alegre (RS) a exposição “Queermuseu”, com 270 obras de arte, incluindo um trabalho do pintor nascido em Brodowski (SP). A mostra abordava a temática sexual e sofreu uma avalanche de protestos na internet.

Também por pressão, no mês passado, o Colégio Santo Agostinho, um dos mais tradiciona­is do Rio de Janeiro, suspendeu a adoção do livro “Meninos Sem Pátria”, de Luiz Puntel, que retrata a vida de uma família exilada durante a ditadura.

“Nestes tempos atuais de revisionis­mo, os pais acusaram o livro de ser uma doutrinaçã­o comunista”, afirma o escritor. “Mas é necessário dizer a eles que a ditadura militar ocorreu mesmo no país”, diz.

O livro foi lançado na coleção infanto-juvenil Vaga-Lume nos anos 1980, no período final do regime militar. “Naquela época, por sinal, não houve nenhum tipo de restrição”, afirma o escritor.

Outro episódio ocorreu no Carnaval deste ano, quando a escola Paraíso de Tuiuti, no desfile dos campeões no Rio, retirou a faixa presidenci­al de um destaque que representa­va o presidente Michel Temer como vampiro. O Palácio do Planalto negou ter feito gestões nesse sentido.

No período eleitoral, a Folha foi proibida pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, de entrevista­r o expresiden­te Luiz Inácio Lula da Silva na prisão, a despeito do fato de essa ser uma situação nada incomum.

Em 2015, por exemplo, com aval judicial, o apresentad­or Gugu Liberato entrevisto­u Suzane Richthofen, condenada pelo assassinat­o dos pais, no Complexo Penitenciá­rio de Tremembé, em São Paulo. Para Fux, a divulgação da entrevista com Lula “poderia causar elevado risco de desinforma­ção”.

Na semana passada, uma série de ações foram realizadas em universida­des pela Justiça Eleitoral, causando indignação em entidades como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituiçõ­es Federais de Ensino Superior).

Fiscais entraram em classes para averiguar o teor ideológico de uma aula, faixas, adesivos e até mesmo manifestos em defesa da democracia foram confiscado­s pela Justiça Eleitoral em vários estados.

O Supremo Tribunal Federal reagiu, suspendend­o por unanimidad­e as decisões. “A liberdade de expressão está sob ameaça, mas nunca pode cair em desuso”, afirma o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano de Azevedo Marques Neto.

“É um fator estruturan­te da sociedade democrátic­a, mais importante até que as eleições periódicas”, declara.

Segundo ele, a liberdade de expressão não é um salvo-conduto para a práticas de crimes, mas não se pode jamais proibir o debate político.

“A homogenia de pensamento é como criar um filho numa bolha, sem contato com bactérias que estimulam a produção de anticorpos”, afirma.

“Uma hora ele pegará uma doença que lhe fará muito mal”, avalia. “O ambiente de discussão é o que forma as concepções do cidadão.”

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Gabriel Cabral/Folhapress O Masp, na avenida Paulista, que realizará nesta segunda (5) seminário em comemoraçã­o do cinquenten­ário do museu
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Mauro Pimentel - 26.out.18/ AFP Estudantes da UFF (Universida­de Federal Fluminense) carregam bandeira contra o fascismo barrada pela Justiça

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