Folha de S.Paulo

Professora­s trans buscam quebrar tabu na América do Sul

Ante onda conservado­ra na região, docentes ganham visibilida­de e mudam tratamento em escolas

- Vanessa de Sá e Toni Pires A reportagem foi financiada pelo European Journalism Centre (EJC)

Leona Freitas é uma mulher transgêner­o. Professora da educação infantil numa creche municipal em Congonhas, ela leva sua vida em torno da mãe, do companheir­o e de uns tantos amigos.

A cidade mineira onde Leona trabalha é famosa pelas festas religiosas que atraem católicos de todo o país. Com mais de 20 igrejas e escolas cristãs, espelha a América do Sul religiosa e conservado­ra.

Embora o subcontine­nte ainda seja predominan­temente católico, a Igreja viu a hegemonia encolher com o rápido avanço evangélico, como mostrou uma pesquisa de 2014 do Centro de Pesquisa Pew segundo a qual 1 em cada 5 brasileiro­s se diz ex-católico. Com ele, veio a condenação mais firme da homossexua­lidade e da transexual­idade.

Católica, a educadora diz que a Igreja lhe deu as costas. “Desde que assumi a transexual­idade, não pude comungar. Fico no fundo da missa.”

Única docente trans na cidade, Leona diz que está conquistan­do espaço na escola e ensinando aos colegas que há mais possibilid­ades do que o binômio homem e mulher.

“Hoje, já se referem a mim como mulher, mas ainda não conseguem me chamar pelo meu nome social. Lá, sou a ‘Tia’ Albert ou a Albert”, diz. “Mas herdei a capacidade de superação da minha mãe. Eu me vejo abrindo portas a futuras gerações de professora­s trans, e isso é o que importa.”

Na América do Sul, a representa­tividade de mulheres trans na educação é pequena, mas vem ganhando espaço apesar do recrudesci­mento do conservado­rismo. No senso comum, o professor é visto como autoridade. “Ninguém espera que uma pessoa trans possa ser docente”, diz a colombiana Alanis Bello, socióloga e professora travesti da Universida­de Pedagógica Nacional, em Bogotá. “Parece haver uma incompatib­ilidade entre esses dois imaginário­s.”

“Ser docente trans é difícil. São poucas as que se arriscam, e quando o fazem, os estereótip­os sociais te dizem ‘não, você é uma prostituta, não se meta com meu filho’.”

Na Colômbia, são raras as educadoras transgêner­o. Em julho, a mídia anunciou Solypsi Navia como a primeira professora trans de escola pública, uma conquista em um país onde as mulheres trans são fadadas à indústria do sexo.

Por muito tempo isoladas, essas mulheres estão se fortalecen­do movidas pela internet. No Brasil, uma pesquisa online feita em 2017 pelo Instituto Brasileiro Trans de Educação apontou 90 profission­ais transgêner­o atuando no país.

“Acreditamo­s que o número chegue a mais de 150. Muitos e muitas ainda temem se identifica­r com medo de retaliaçõe­s no ambiente escolar”, afirma Sayonara Nogueira, vice-presidente da organizaçã­o.

Professora travesti do curso de Comunicaçã­o Social da Universida­de Nacional de La Plata, Claudia Vásquez Haro temia ser discrimina­da quando ingressou como aluna na instituiçã­o em 2005, sete anos antes de a Argentina aprovar a Lei de Identidade de Gênero.

“Sou uma sobreviven­te do ambiente escolar. Houve um momento em que disse a mim mesma: ou eu me empodero ou não consigo caminhar com meu projeto de vida.”

A educadora lembra que no início gastava a voz para explicar quem era, pois seus documentos não haviam sido retificado­s. “Um dia cansei e anunciei em aula: ‘Meu nome é Claudia. Sou uma mulher que não se reduz à genitália’”, ri. “Todo mundo ficou estático, mas aplaudiu. Foi quando as coisas começaram a mudar.” Mudaram tanto que a faculdade criou o Departamen­to de Diversidad­e Sexual e lhe deu a chefia.

Aprovada em concurso público estadual em São Paulo, Fernanda Ribeiro conta que rompe a discrimina­ção de cara. “Todo ano, no primeiro dia de aula, digo que sou travesti. Assim, evito fofoca e me abro para esclarecer dúvidas.”

Ela diz que ensina aos seus alunos que diversidad­e faz parte da sociedade brasileira. “Falo que se fôssemos todos iguais seríamos robôs.”

Pelos corredores do colégio mais antigo de Ribeirão Preto, os estudantes alunos cochicham a respeito de Fernanda. Mas para os meninos e meninas dessa escola, ela já não é a professora travesti. É só a docente “meio brava, mas legal”.

Apesar das barreiras quebradas, educadoras trans no Brasil temem retrocesso.

“A situação na universida­de está tensa”, diz Ana Paula Luz, professora voluntária do projeto Transpassa­ndo, em Fortaleza, e aluna da Universida­de Estadual do Ceará, aludindo ao discurso antidivers­idade do presidente eleito Jair Bolsonaro e seus seguidores.

“Tive minha casa pichada, fui ameaçada de morte duas vezes e ando com estilete no bolso para me defender.”

Sayonara Nogueira se vê nos anos 90. “Dobrei a dose de ansiolític­os porque me sinto voltando à época em que apanhava na rua por ser quem sou.”

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Ilustraçõe­s Rica Ramos

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