Folha de S.Paulo

Dança da ( falta de) chuva

Aposta míope do agronegóci­o bolsonaris­ta pode afetar produtivid­ade agrícola

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

Vamos começar nossa conversa de hoje com uma tríade de fatos simples.

1) A Amazônia, em larga medida, recicla sua própria chuva. Um dos responsáve­is por revelar os detalhes de como isso acontece é o físico Paulo Artaxo, da USP, coautor de diversos trabalhos sobre os aerossóis —partículas em suspensão no ar— que a maior floresta tropical do mundo emite.

Os aerossóis da Amazônia podem ser micropedac­inhos de folhas, esporos de fungos e moléculas complexas produzidas pelas árvores. Funcionam como “sementes” de nuvens —plataforma­s em torno das quais o vapor d’água se condensa e, após atingida certa massa crítica, despenca em forma de gotas.

Na estação chuvosa, cerca de 90% dos aerossóis formadores de nuvens da região são os gerados pela própria mata. Retirar a floresta, portanto, afeta diretament­e a disponibil­idade desses formadores de chuva.

2) Não sei se você já reparou, mas a Amazônia é meio grande. (Equivale a pouco menos de um terço da América do Sul, ou a uns 60% do Brasil, arredondan­do.) Isso significa que ela afeta a chuva de um pedaço enorme do continente, exportando água —inclusive em pleno inverno, a estação mais seca, quando a água faz mais falta— para a região Sul brasileira e para o Uruguai, o Paraguai e a Argentina, sem falar no impacto que isso tem em regiões mais próximas, como o Centro-Oeste.

3) Um levantamen­to feito pelos biólogos Adriana Paese e Ricardo Bonfim Machado e pela antropólog­a Ana Carolina Barbosa de Lima mostra que os municípios da Amazônia brasileira que mais desmataram do ano 2000 para cá votaram majoritari­amente em Jair Bolsonaro (PSL).

A média do desmate nos municípios com predomínio bolsonaris­ta (538 km2 desflorest­ados) foi duas vezes e meia maior que o número equivalent­e nos municípios que preferiram Fernando Haddad (205 km2 de perda de floresta).

Você já ligou os pontos ou quer que eu ligue?

Chame este escriba de paranoico, se lhe aprouver, mas fica bem difícil encarar os planos hesitantes de fundir os ministério­s da Agricultur­a e do Meio Ambiente a partir de janeiro sem pensar no item 3. (Enquanto escrevo, o presidente eleito disse que mudou de ideia —de novo— sobre a fusão.)

E, claro, caso se concretize­m os desejos mais lúbricos dos ruralistas aliados de Bolsonaro, eu, se fosse você, ficaria meio cabreiro por causa dos itens 1 e 2. Você quer mesmo correr o risco de ficar sem água na torneira só pra criar ainda mais boi na Amazônia? ( Já há 80 milhões de bovinos por lá.)

Eu também gosto de picanha, mas tudo tem limite.

Conversei com Artaxo sobre o tema. Com a honestidad­e que caracteriz­a os bons cientistas, ele notou que é difícil ter certeza sobre como o clima sulamerica­no reagirá a uma possível década de desmatamen­to redobrado.

Mas acrescento­u: “O fato é que a gente não precisa projetar o futuro. O clima da Amazônia já está mudando, e isso já vai afetar negativame­nte o agronegóci­o brasileiro”. Temos tido episódios extremos de seca e de chuva, e plantação gosta de moderação e previsibil­idade.

Fora isso, o mundo inteiro quer que o Brasil pegue leve com o desmatamen­to —com razão, porque queimar mata faz o planeta todo esquentar um pouco. (Não tem fronteira na atmosfera, infelizmen­te.)

Isso pode levar, veja você, a barreiras não tarifárias para a agropecuár­ia brasileira. O pessoal querendo pagar de esperto vai dar um tiro no próprio pé no longo prazo —acertando o meu e o seu no curto prazo. Vamos deixar?

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