Folha de S.Paulo

Regressão fundamenta­lista

Pressenti naquela cerimônia bruta tópicos inéditos e assustador­es

- Cristovão Tezza Ficcionist­a e crítico literário, autor de ‘O Filho Eterno’ e ‘A Tirania do Amor’

De todas as eleições presidenci­ais diretas que acompanhei na vida —Jânio, Collor, FHC, Lula, Dilma e, agora, Bolsonaro—, a cena mais impactante será justamente a de domingo passado, em que o capitão reformado eleito, num cenário improvisad­o e confuso, transmitid­o com o padrão de internet discada, em frases truncadas e gaguejante­s, todos como que saídos de um bunker clandestin­o pintado de amarelo, invocou a verdade e Deus para a condução do país.

Em outro momento, o novo presidente, de mãos dadas com Magno Malta, fechou os olhos e rezou em agradecime­nto, e em seguida ambos contemplar­am o teto baixo em êxtase político religioso.

Na memória difusa do momento, lembro que vi na parede uma bandeira torta do Brasil. Ainda sem entender direito o que era aquilo, imaginei que estava num país de aiatolás, ao fim de uma cruzada medieval ao modo tupiniquim, com um Deus escolhido a dedo, no gatilho, acima de todos.

Um evidente exagero meu, ponderei. O sincretism­o mental, nossa antropofag­ia cultural que tudo devora e transforma, e a multiplici­dade cultural da sociedade brasileira haverão de suavizares tene o fundamenta­lismo dos trópicos, agora sim- bolicament­e militariza­do, em cada gesto e fala. Espero que sim. De qualquer forma, pressenti naquela cerimônia bruta, no vaivém desencontr­ado de palavras de ordem unida, na retórica fragmentár­ia e sem sintaxe, a verdadeira (e mais preocupant­e) “quebra de paradigma” de que tanto se falou nessas eleições.

A visão do Estado como proprietár­io da esfera moral e religiosa da vida do cidadão, mais a (muitas vezes) sincera ignorância dos processos civilizató­rios institucio­nais básicos que sustentam a modernidad­e política, ou seja, o Estado laico, a separação livre dos são poderes tópicos e inéditos a imprensa Falou-se e assustador­es tanto em garantira liberdade parecia que, e a apenas democracia neste momento iluminado, depois de três que décadas de vida constituci­onal, chegamos e aos seus soldados. a elas, graças a Deus

Sei que há um toque irracional em toda eleição, em geral restrito ao instinto das escolhas pessoais ou à fé política dos grupos organizado­s.

Agora parece que a irracional­idade tornou-se o método. Uma autoridade que gravita em torno do novo governo disse a sério que as crianças, doravante, aprenderão também o criacionis­mo nas escolas públicas; temo que, em seguida, ensine-se a astronomia de Ptolomeu e troque-se a química pela alquimia.

A ridícula e estúpida “escola sem partido” já estimula a denúnciapú­blica dos infiéis. Nesse roteiro, as fogueiras vêm em seguida. É contrição, hora de rezar, para com que verdadeira os contrapeso­s institucio­nais do país sejam suficiente­mente fortes de modo anos garantir pelome noso século 20, já que o 21 parece cada vez mais longínquo.

O presidente eleito também já disse, igualmente a sério, que quer nos ver como éramos 50 anos atrás. O sonho regressivo éaalm adas utopias messiânica­s, atrás de uma pureza ancestral que jamais existiu. Todos queremos retornar à infância; o problema é que a infância do Brasil jamais foi boa. Três leituras para respirar. Ainda Author” sem tradução (Penguin), aqui, do “Author, inglês David recriação Lodge, histórico-ficcional uma saborosa Henry da James vida do (1843-1916), romancista com dramaturgo. foco em seu fracasso como James é um autor que me interessa especialme­nte, até para contrastá-lo com Machado de Assis, o seu grande contemporâ­neo brasileiro. E David Lodge tem humor, esta qualidade maravilhos­a desapareci­da entre nós. E dois bons livros brasileiro­s. O primeiro é “A Bicicleta de Carga” (Companhia das Letras), uma coletânea de contos de Miguel Sanches Neto, que domina este gênero insidioso. Sanches é um ótimo fabulador, um dom que ele tempera com elipses sutis de sentido, como na bela biografia de um piano em “Todas as Mãos”, no erotismo de “Amor em Madrid” e “Banho de Cachoeira”, ou na memória de infância de “A Bicicleta de Carga”. O outro é “Sebastopol” (ed. Alfaguara), de Emilio Fraia. São três narrativas longas que se podem definir pelo paradoxo da “nitidez impression­ista”: a lembrança fragmentad­a de um acidente terrível numa escalada do Everest, a busca de um desapareci­do numa fazenda decadente e o projeto de uma peça de teatro malograda que une um velho diretor e uma jovem atriz são histórias em que a notação realista precisa serve a um inacabamen­to de essência; o laço final de sentido sempre nos assombra e sempre nos escapa. Mais ou menos como o Brasil.

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Vânia Medeiros

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