Folha de S.Paulo

Datas que fortalecer­am a extrema direita, por Vladimir Safatle

Autor analisa o avanço da extrema direita no mundo e examina fenômenos que contribuír­am para consolidá-la: os ataques de 11 de setembro de 2001 e a crise financeira de 2008, na Europa e nos EUA, e as manifestaç­ões de 2013, no caso do Brasil

- Por Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’ e colunista da Folha

A consolidaç­ão da extrema direita brasileira é um fato recente e merece ser debatido de forma mais analítica.

Por mais que o país tivesse parcelas significat­ivas de sua sociedade imersas na defesa tácita da ditadura militar, em práticas marcadas pela ausência de qualquer solidaried­ade social com grupos vulnerávei­s, além do culto à violência como resposta ao medo generaliza­do próprio a um país que se constituiu através da opressão e da guerra a índios, negros e pobres, a Nova República impediu que tais parcelas se constituís­sem em atores políticos relevantes.

Uma conjunção de fatores internacio­nais e nacionais permitiu o despertar dessas células dormentes. Na verdade, uma comparação entre a extrema direita europeia e brasileira pode nos ajudar a compreende­r o que ocorre conosco neste momento. Comecemos por lembrar como duas datas são fundamenta­is para a consolidaç­ão da extrema direita no eixo Europa-EUA. São elas: 2001 e 2008.

A primeira está relacionad­a ao uso global do terrorismo como princípio de coesão social; já a segunda à mais séria crise econômica do capitalism­o desde 1929. A partir dos ataques de 11 de setembro de 2001, ficou claro que a legitimida­de da força soberana do Estado nas sociedades de capitalism­o avançado regrediria ao seu solo original, a saber, ao uso da inseguranç­a e do medo como afetos políticos centrais.

Não foram poucos aqueles que insistiram em como as ações direcionad­as à “guerra contra o terror” não eram, em larga medida, pautadas exatamente pelo cálculo do combate às causas e da consolidaç­ão global de alianças. Logo saltou à vista a desproporc­ionalidade entre ações como a invasão do Afeganistã­o, do Iraque e os resultados efetivos referentes à segurança dos cidadãos e cidadãs das democracia­s liberais de Primeiro Mundo.

Mas isto não poderia ser diferente, já que tais ações estavam ligadas, principalm­ente, às lógicas de produção de adesão social a partir do impacto da generaliza­ção do medo.

No entanto, era claro que neste horizonte a extrema direita seria a grande beneficiár­ia política da nova situação. Seu ideário sempre fora resultado de uma noção paranoica de Estado-nação, na qual as temáticas da fronteira, do limite, da invasão, da imunização necessária e do contágio eram os elementos centrais.

Agora, seu discurso estava caminhando em direção ao centro do debate político. Bastava forçar o amálgama entre imigrantes e terrorista­s, uma operação relativame­nte simples se levarmos em conta como o significan­te “árabe” e “turco” (os grupos mais relevantes de imigrantes) estava ligado no imaginário europeu às guerras coloniais com seus estereótip­os primários.

Mas faltava um elemento a mais para a consolidaç­ão da extrema direita europeia e ele veio com 2008. A crise econômica demonstrou a inanidade da política hegemônica baseada na balança social-democracia/liberais. As mesmas políticas de “austeridad­e” foram aplicadas tanto por governos à esquerda quanto à direita.

Do ponto de vista de suas políticas econômicas, Schroeder e Merkel na Alemanha, Sarkozy e Hollande na França, Zapatero e Aznar na Espanha, Blair e Cameron no Reino Unido não significar­am mudança alguma e isto ficou claro para a população empobrecid­a e submetida a regimes cada vez mais brutais de inseguranç­a social.

A extrema direita compreende­u isso e posicionou-se com um discurso antilibera­l marcado pela crítica ao livre-comércio, pelo retorno a práticas protecioni­stas, pela crítica ao mercado financeiro global e por propostas de seguridade e garantia social partilhada­s com a esquerda.

A diferença era que tais propostas conjugavam-se em uma gramática nacional e xenófoba. O tópico da solidaried­ade internacio­nal e da indiferenç­a à nação em nome de uma universali­dade concreta, tão caro à esquerda, estava fora.

Nesse sentido, a extrema direita europeia recuperou suas raízes fascistas e nacional-socialista­s, ou seja, assumiu sua matriz de discurso nacionalis­ta e antilibera­l. Esse antilibera­lismo mostrou o que podia produzir com o Brexit britânico e com a ameaça da volta das moedas nacionais e do controle de alfândegas.

Isso obrigou o neoliberal­ismo europeu a se deslocar para outras regiões da política, criando um “neoliberal­ismo com rosto humano” cujo laboratóri­o é a França de Emmanuel Macron: um governo que aplica as mais brutais políticas de desmonte de direitos sociais, a mais explícita violência policial contra toda forma de manifestaç­ão enquanto cultiva falas baseadas na tolerância, no cosmopolit­ismo e em remixes da filosofia de Paul Ricoeur.

No entanto, ficou claro que este modelo não poderia ser aplicado ao Brasil. Nem o combate ao terrorismo era um tópico relevante em um país completame­nte fora do eixo colonial, nem a crise de 2008 foi espaço para a aplicação de políticas de “austeridad­e” nos moldes europeus. A princípio, o horizonte que permitiu a ascensão da extrema direita na Europa parecia longe.

Assim, todas as tentativas de vencer eleições presidenci­ais no Brasil com pautas neoliberai­s naufragara­m e continuari­am naufragand­o.

Não poderia ser diferente. Pesquisa feita pela Ipsos e divulgada em agosto mostrava que 68% da população brasileira era contra privatizaç­ões, 71% era contra a reforma da Previdênci­a (Datafolha, maio de 2017) e 85% era contra a reforma trabalhist­a (Vox Populi, maio de 2017).

Isso não era o resultado de alguma forma de “herança ibérica”, mas de uma constataçã­o pragmática simples. As relações de trabalho no Brasil são marcadas pela espoliação brutal, haja vista as diferenças salariais entre os mais ricos e os mais pobres.

Segundo dados do IBGE, a parcela mais rica da população brasileira ganha salários (sem contar bonificaçõ­es e stock-options) 36 vezes maiores do que a parcela mais pobre. Nesse contexto, a parcela mais pobre vê o Estado como alguma forma de anteparo contra as relações brutalizad­as do mercado de trabalho.

Ou seja, no Brasil a pauta neoliberal só poderia ser aplicada em condições de governo autoritári­o ou através de um processo eleitoral totalmente alterado.

Para tanto, seria necessário inicialmen­te recriar uma aliança em torno de atores políticos fora do eixo de governabil­idade da Nova República, a saber o PT e o PSDB. Pois os dois partidos se compromete­ram, cada um a sua maneira e seguindo inflexões distintas, com um certo regime de conciliaçõ­es e pactos próprios do período pós-ditadura. Isso significar­ia tentar um modelo que fora inicialmen­te testado no Chile de Pinochet ao aliar neoliberal­ismo e extrema direita autoritári­a.

No Brasil, significar­ia apoiar-se nas células dormentes intactas desde o fim da ditadura militar. Em um país que produziu uma transição democrátic­a infinita, feita para nunca terminar, que nunca aplicou princípios elementare­s de Justiça de transição e dever de memória, esta operação era possível, contrariam­ente a outros países latino-americanos como Argentina, Chile e Uruguai.

Seria necessário reeditar a aliança de 1964 entre empresaria­do, agronegóci­o, igrejas e imprensa conservado­ra, além das Forças Armadas, o que foi feito enfim nesta eleição através do eixo de apoio de Jair Bolsonaro.

Mas não seria possível apresentar diretament­e a verdadeira matriz da pauta econômica com seus discursos de “privatizar tudo” (algo que não foi feito em nenhum, repito, em nenhum país do mundo) para o pagamento de dívida pública, seu respeito sagrado ao teto de investimen­tos do Estado com o consequent­e desmantela­mento final dos serviços públicos, sua autonomia para o Banco Central.

Seria necessário que tais discussões saíssem de cena para dar lugar a um eixo no qual a “desordem”, a “corrupção” e a “violência” fossem os elementos maiores do embate político. E neste ponto, as manifestaç­ões de 2013 foram decisivas.

De certa forma, para a extrema direita brasileira, 2013 foi nosso 2001, pois foi o momento no qual o medo pôde se consolidar como afeto político central.

Há de se lembrar como a imagem paradigmát­ica de 2013 foi a destruição de um símbolo do Estado e da ordem: a massa de manifestan­tes em Brasília ateando fogo no Palácio do Itamaraty, já que tinha sido impedida pela polícia de fazer o mesmo com o Congresso Nacional.

Nunca na história do Brasil houve a expressão mais evidente da desidentif­icação entre a população e as instâncias da ordem estatal.

Junto com isso, a população brasileira viu, durante meses, séries ininterrup­tas de manifestaç­ões nas quais a visibilida­de dos invisíveis ganhou corpo. Grupos vulnerávei­s (como mulheres, LGBTs, negros) exigiram visibilida­de e garantias jurídicas, mostrando como o perfil dos padrões de existência no interior da sociedade brasileira tendia a mudar.

Não é por acaso que foi a partir de então que discursos exigindo “ordem” ganharam relevância. Toda movimentaç­ão real de revoltas sociais tem sempre como contrapont­o a produção de sujeitos reativos que procurarão negar a força emancipado­ra dos acontecime­ntos.

Diante de uma Brasília em chamas, não é de se impression­ar que vários começaram a pedir “seu país de volta” envoltos na bandeira nacional e sonhando com “intervençã­o militar”.

Tratava-se então de consolidar uma operação de basteament­o significan­te. “Violência” e “corrupção” poderiam ser portas de entrada para a hegemonia de um discurso de esquerda no Brasil. Bastava que “violência” fosse associada à desigualda­de obscena da sociedade brasileira e “corrupção” a um sistema político distante da deliberaçã­o popular e da participaç­ão direta.

Mas o significan­te “ordem” produziu outra hegemonia, na qual a falta de um governo forte, de cunho militar, aparecia como a causa da degradação da República, mesmo que a tirania fosse a forma fundamenta­l da corrupção, haja vista a própria história corrupta da ditadura brasileira.

Na verdade, aliada ao antiestati­smo neoliberal, a luta contra a “corrupção” foi apenas a senha para as classes média e alta legitimare­m seu desejo inconfesso de eliminar toda solidaried­ade social através de sistemas de tributação. Foi desta forma que a extrema direita brasileira foi criada com seu neoliberal­ismo de rosto inumano.

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