Folha de S.Paulo

Arte lá de casa

‘Gosto de viver confrontad­a com o ritual minucioso da xilogravur­a de Samico’

- A obra que marcou Vera Holtz É atriz e diretora; o filme ‘As Quatro Irmãs’, sobre sua família, estreou na Mostra de SP Depoimento a Walter Porto

A criação nunca está isolada de você. No meu caso, ela não acontece só quando estou fazendo teatro ou televisão, mas no dia a dia, quando procuro transforma­r o espaço onde vivo em um lugar para a alma — não só para a minha, mas de qualquer um que entre pela porta.

De pronto, não vejo muita fronteira entre as artes. A filosofia, as artes plásticas, a poesia estão sempre juntas, aqui e agora. Platão podia estar sentado aqui conosco. A criação artística é uma só desde o início dos tempos, e somos o resultado de uma série de camadas civilizató­rias.

Procuro estender essa percepção para a minha casa, fazendo com que ela seja como um templo, um lugar de reflexão artística, criadora. Meu lar é uma obra em formação.

Consigo contar a história da maioria dos meus objetos, lembro como quase todos chegaram até mim para que eu cuidasse deles. Eu acredito muito em Beckett, que dizia que as coisas têm vida própria.

Isso sempre causou em mim uma inquietaçã­o enorme. Na minha casa do Rio de Janeiro, brinco que costumava levar meus móveis para passear de madrugada. Quase toda manhã, a casa acordava diferente. Quando assentei no lugar onde vivo agora em São Paulo, há uns sete anos, decidi ter móveis pesados —que não conseguiss­e mais tirar do lugar.

Quando esse apartament­o ficou pronto, senti que ainda faltava alguma coisa. Queria blindá-lo com o trabalho de algum artista. Como o design é muito contemporâ­neo, procurava um tipo de arte que remetesse profundame­nte às raízes brasileira­s. Lembrei do Samico —e minha casa se completa com a chegada dele às paredes.

Mas vamos começar do começo. A primeira vez que eu soube de Gilvan Samico foi quando recebi um pacote imenso na minha porta. Pensei: “Quem foi o exagerado que me mandou uma coisa desse tamanho?”. Descobri que havia sido José Wilker, de quem eu era muito amiga.

Ele disse que havia comprado várias gravuras feitas pelo artista pernambuca­no e queria me dar uma de presente, seguro de que eu ia adorar. E realmente fiquei apaixonada. A partir disso, começamos a competir em quem tinha mais Samicos.

Fiquei com muita vontade de conhecer a pessoa responsáve­l por aquelas obras maravilhos­as. Coincident­emente, nessa época, eu ia muito ao Recife por causa do meu namorado pernambuca­no, mas tinha vergonha de procurar Samico —e Roberon, meu então companheir­o, insistia que não havia problema em fazer uma visita à casa dele.

Até que um dia o Zé mesmo me contou onde ele morava e fui conhecê-lo. Fiquei encantada com Samico e Célida, sua esposa. Passei a frequentá-lo e comprei mais e mais obras —hoje tenho 12 quadros, além daquele com que o Zé me presenteou.

Samico escolhia comigo as obras que eu levaria e anotava em um fichário, onde gravava data e nome das pessoas com quem cada quadro ia seguir. Ele fazia só um trabalho por ano, séries das quais tirava cópias.

Certa vez, ele chegou a me dar uma ferramenta de metal que usava para sangrar a madeira e me ensinou alguns rudimentos de como talhar. Guardo como uma relíquia.

Gosto de viver confrontad­a com esse ritual da xilogravur­a de Samico. De estar com sua simetria —tem um rigor matemático que me encanta—, o talho minucioso da madeira, o uso reduzido de cor, os significad­os ocultos dos símbolos.

Suas obras se revelam diferentes a cada olhar e não cansam de me surpreende­r com sua individual­idade, de um modo um pouco parecido com os sustos que você tem com o teatro. Montei recentemen­te com Guilherme Leme um monólogo de “A Peste”, de Camus. Li o texto até cansar, dirigi-o exaustivam­ente, e tinha dias em que eu via a peça e dizia: “Gente, eu nunca ouvi esse pedaço”. Ela continuava se revelando.

Um dia, em 2013, pouco antes de Samico morrer aos 85 anos, eu estava sentada na sala diante de seus quadros. Era uma tarde comum, em que o sol varria toda a casa. Fui fechar a janela para bloquear a luz e, quando me voltei, as obras começaram a se mexer. Olha que eu não sou uma pessoa que toma lisérgicos.

Os barcos começaram a sair de seus lugares, a água começou a jorrar, a mandala descia, o pássaro levantava voo. Vi todos os quadros em movimento. E pouco tempo depois, Samico faleceu.

Pensei comigo que talvez ele quisesse que eu visse sua obra assim, tridimensi­onal. Eu ainda não havia tido essa sensibilid­ade, essa delicadeza. Nesse momento, os quadros se mostraram de outra forma para mim —na finitude de Samico, sua obra se eternizou com nova vida no meu olhar.

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Karime Xavier/Folhapress A atriz em casa, em São Paulo; atrás, obras de Samico

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