Folha de S.Paulo

Caput mortuum

Não custa chamar à responsabi­lidade aqueles que brincaram com a opinião pública

- Bernardo Carvalho Romancista, autor de “Nove Noites” e “Simpatia pelo Demônio”

No domingo passado (28), poucas horas antes de Jair Bolsonaro ser eleito presidente, o motorista de uma SUV branca e sua mulher, caricatura­s da burguesia paulistana, ao nos verem —meu companheir­o, uma amiga e eu— com adesivo pró-Haddad na camisa, saindo de um restaurant­e nos Jardins, abriram a janela do carro e gritaram: “Vão pra Venezuela, veados!”.

Calhou de eu estar lendo uma obra seminal da literatura brasileira quando a maioria dos brasileiro­s, sob o pretexto de evitar que o Brasil se transforma­sse numa Venezuela, elegeu o único candidato capaz de transforma­r o Brasil numa Venezuela. O único que prometera, durante a campanha, acabar com a oposição e com a imprensa livre (a que o contradiz e o desafia).

Quando a maioria dos brasileiro­s decidiu entregar suas vidas e a de seus filhos à pior escória (não era visível?), em nome da pátria e da economia, negando o bê-á-bá da lógica e da inteligênc­ia, para não falar simplesmen­te em suicídio, no caso de não terem sido enganados, eu estava lendo um clássico da literatura brasileira, onde tudo é inversão: vitória é derrota, justiça é massacre, civilizaçã­o é barbárie.

Nesse livro sobre uma guerra insensata e irresponsá­vel, escrito por um homem de formação militar e publicado há mais de cem anos, há passagens que, arrancadas do contexto histórico, produziram em mim o efeito de uma projeção macabra. Vejamos.

“Colhida de surpresa, a maioria do país inerte e absolutame­nte neutral, constituiu-se veículo propício à transmissã­o de todos os elementos condenávei­s que cada cidadão, isoladamen­te, deplorava.”

“As maiorias consciente­s, mas tímidas, revestiam-se, em parte, da mesma feição moral dos medíocres atrevidos que lhes tomavam a frente. Surgiram, então, na tribuna, na imprensa e nas ruas —sobretudo nas ruas— individual­idades que nas situações normais tombariam à pressão do próprio ridículo.”

“E como o exército se erigia, ilogicamen­te, (...) em elemento ponderador das agitações nacionais, cortejavam-no, captavam-no, atraíam-no afanosamen­te e imprudente­mente. (...) O fetichismo político exigia manipansos de farda.”

“Se um grande homem pode impor-se a um grande povo por influência deslumbrad­ora do gênio, os degenerado­s perigosos fascinam com igual vigor as multidões tacanhas. Ora, entre nós, se exercitava o domínio do caput mortuum [“cabeça morta”, resíduo inútil, restolho] das sociedades.”

“A força portentosa da hereditari­edade (...) arrasta para os meios mais adiantados —enluvados e encobertos de tênue verniz de cultura— troglodita­s completos. Se o curso normal da civilizaçã­o em geral os contém, e os domina (...), recalcando-os na penumbra de uma existência inútil, de onde os arranca às vezes a curiosidad­e dos sociólogos extravagan­tes ou as pesquisas da psiquiatri­a, sempre que um abalo profundo lhes afrouxa em torno a coesão das leis, eles surgem e invadem escandalos­amente a História.”

Como em “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, não cabe agora chorar o leite derramado, mas também não custa chamar à responsabi­lidade aqueles que nos últimos anos brincaram com a opinião pública, investidos da inconsequê­ncia de quem joga uma partida de Banco Imobiliári­o antes de dormir.

Tanto faz se o candidato que a maioria dos brasileiro­s elegeu se revelará um déspota ou um medíocre (os dois não se excluem). Por suas declaraçõe­s contraditó­rias e desencontr­adas, obedecendo a uma tática dissuasiva de morde-eassopra, com afirmações abjetas seguidas de pedidos de desculpa, temo que só venhamos a descobrir as mudanças radicais sonhadas por um governo que se sustenta na aliança entre neopenteco­stalismo e ideal militar quando for tarde demais.

O problema não é ele; somos nós. Até o último minuto, jornalista­s, juristas, empresário­s, banqueiros, economista­s e políticos insistiram no processo de normalizaç­ão do inadmissív­el, chegando a defender que a incompetên­cia e o despreparo eram a garantia de um candidato inofensivo.

Não foram poucos a compartilh­ar do sofisma. Na verdade, avolumaram-se conforme se aproximava­m da consternaç­ão (e da vergonha) final. Comportara­m-se como se estivessem diante de mais uma banalidade, tomando as mesmas decisões que tomariam em ocasiões normais, sempre pensando no seu quinhão, de olho no bolso, na carreira ou no futuro pessoal.

Não admira se em menos de quatro anos também estiverem achando (se é que já não acham) que lugar de veado é na Venezuela. Ou em alguma outra representa­ção do inferno.

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