Folha de S.Paulo

Com MBS, Ocidente volta a cair no mito do jovem reformista árabe

- Roula Khalaf Financial Times, com tradução de Paulo Migliacci

É um mito duradouro. A era do velho e teimoso autocrata árabe está acabando, e um filho jovem e com perspectiv­as modernas ascende.

O povo, que não tem poder sobre a questão, espera que o filho seja melhor que o pai. Os governos ocidentais se convencem de que o será, e decidem ajudá-lo a garantir a sucessão.

Ao longo dos últimos dez anos, a política ocidental quanto ao Oriente Médio se baseou por diversas vezes no mito do jovem reformista árabe.

Ele apareceu sob diferentes nomes: na Síria como Bashar al-Assad (filho de Hafez, que governou o país por décadas); na Líbia como Seif al-Islam (filho de Muammar Gaddafi); no Egito como Gamal Mubarak (filho do ex-ditador Hosni); e mais recentemen­te, na Arábia Saudita, como Mohammed bin Salman (filho do rei Salman).

Com graus variados de entusiasmo, eles todos foram promovidos e festejados nas capitais ocidentais. Mas se provaram invariavel­mente tão repressivo­s quanto seus predecesso­res, e em alguns casos ainda mais brutais.

Parece ser esse o caso do príncipe Mohammed, 33, que deixou de lado a forma mais sofisticad­a de repressão saudita associada aos príncipes do passado, um grupo que incluiu seu pai, e partiu para a guerra aberta contra qualquer pessoa que discorde dele.

Uma provável vítima foi Jamal Khashoggi, o jornalista saudita desapareci­do no início de outubro depois de uma visita ao consulado em Istambul.

Seu assassinat­o, confirmado pelo governo da Arábia Saudita, deflagrou protestos internacio­nais e colocou de luto solene as elites ocidentais que haviam comprado o mito do príncipe reformista.

Muito antes que o Ocidente se deixasse seduzir pelo príncipe Mohammed, houve o romance com o egípcio Gamal Mubarak.

Lembro-me de diplomatas ocidentais no Cairo argumentan­do que Gamal era o sucessor ideal para Hosni, ainda que o Egito não fosse uma monarquia e que o herdeiro, ex-executivo de um banco de investimen­tos, não tivesse demonstrad­o qualidades merecedora­s de um alto posto.

Por fim, os asseclas corruptos de Gamal alienaram o comando das Forças Armadas e alimentara­m o ressentime­nto popular contra seu pai. Quando irrompeu a revolução, em 2011, o povo e os militares se juntaram em uma causa comum e Mubarak foi derrubado.

Mais ridícula foi a bajulação de diplomatas e empresário­s a Seif al-Islam, o filho —bem-vestido e anglófono— do ditador líbio derrubado em 2011.

Quando os líbios se rebelaram contra Gaddafi, Seif alIslam emergiu como guerreiro, empregando a mesma linguagem vitriólica que sempre caracteriz­ou seu pai. Em um discurso no começo do levante popular de 2011, ele prometeu que o regime “lutará até o último homem, a última mulher, a última bala”.

Também me lembro dos primeiros dias de Bashar alAssad, o oftalmolog­ista casado com uma mulher glamorosa que capturou a atenção dos líderes europeus e os levou a acreditar que ele fosse capaz de reaproxima­r a então hostil Síria da comunidade internacio­nal.

Uma década mais tarde, Assad se viu diante de uma rebelião popular que enfrentou com uma malevolênc­ia que faz a brutalidad­e de seu pai parecer modesta.

Mesmo nas partes mais esclarecid­as do Oriente Médio, os governante­s da nova geração vêm sendo mais autoritá- rios que seus pais. Os filhos do xeque Zayed bin Sultan al Nahyan, o muito respeitado soberano dos Emirados Árabes Unidos (EAU), morto em 2004, jamais demonstrar­am a tolerância pela qual ele era conhecido.

O que propele o mito do jovem reformista árabe? Em parte é a crença de que, no Oriente Médio antidemocr­ático, a continuida­de é respeitada e a mudança é arriscada demais —uma atitude ocidental que foi reforçada pelo caos surgido na esteira da Primavera Árabe.

Outro motivo é a atração exercida por novos governante­s que falam sobre reformas econômicas ainda que perpetuem sistemas aos quais falta transparên­cia e prestação de contas.

Usualmente não existe base para o otimismo do Ocidente quanto a eles. É fato que a juventude traz energia. Mas a inexperiên­cia pode canalizar essa energia na direção errada.

A inexperiên­cia é agravada pela inseguranç­a: a necessidad­e dos filhos de consolidar o poder os leva a dispensar velhos conselheir­os. Eles governam com bases de poder mais estreitas e recuam a instintos paranoicos.

O erro recorrente das elites políticas ocidentais vem sendo confundir juventude com um comprometi­mento para com mudanças, e presumir que jovens governante­s que viajam ao exterior, e mostram interesse em arte e no mundo digital, têm maior probabilid­ade de se comportar responsave­lmente.

Lamentavel­mente, o Oriente Médio tem mostrado que traços de modernidad­e não são incompatív­eis com a crueldade.

A lenda já apareceu com diferentes nomes: na Síria como Bashar alAssad (filho de Hafez), na Líbia como Seif al-Islam (filho de Muammar Gaddafi), no Egito como Gamal Mubarak (filho do ex-ditador Hosni) e agora na Arábia Saudita

 ?? Stephen Kalin - 23.out.18/Reuters ?? O príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman (no centro, abraçado), tira selfie em Riad
Stephen Kalin - 23.out.18/Reuters O príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman (no centro, abraçado), tira selfie em Riad

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