Folha de S.Paulo

Religião, família e costumes

O pensamento público parecia cheerleade­rs num jogo de futebol americano

- Ricardo Cammarota Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de ‘Dez Mandamento­s’ e ‘Marketing Existencia­l’. É doutor em filosofia pela USP

Religião, família e costumes são três palavras que tiram o sono de muito inteligent­inho. No gradiente que compõe o pensamento público e acadêmico, essas três palavras são das que causam maior náusea. E, para piorar, as três foram ícones da vitória do candidato do PSL à Presidênci­a.

O olhar sobre essas três palavras, dado por grande parte desse pensamento público e acadêmico, é exemplo claro do vexame que a inteligênc­ia pública passou nas últimas eleições para presidente: parecia um time de cheerleade­rs num jogo de futebol americano.

Em vez de tentarem compreende­r o processo, viraram o rosto para a população e reincidira­m em suas obsessões históricas de classe (e em seus empregos, redes de amizades, convites para jantares e festivais de cinema).

As pesquisas de marketing sobre a extinta classe C mostravam que seus jovens eram mais comunitári­os e valorizava­m mais a família e vínculos cotidianos próximos do que jovens das classes A e B. Há aqui uma pista a ser seguida.

A esquerda é um fetiche de rico. Não entenda “rico” aqui como milionário. Entenda como gente que reúne certas condições materiais, sociais e psicológic­as que dão uma sensação de segurança difusa ao cotidiano. Gente “comum” valoriza a religião, a família e os costumes. E temas como esses podem ser recobertos, inclusive, por diferentes orientaçõe­s sexuais, ao contrário do que pensa nossa vã filosofia “engajada”.

Religião é o maior sistema de sentido que existe e opera unindo concepções teóricas e gerais sobre as coisas (criação do mundo, pecado, reencarnaç­ão, evolução espiritual e afins) a práticas cotidianas concretas e fatos objetivos (culto, orações, reuniões entre “irmãos”, ajuda voluntária, nascimento, casamento, doença e morte). As concepções gerais dão sentido ao cotidiano, este dá “carne” às concepções (os especialis­tas dizem “dimensão fática”, referindo-se a “fato concreto”).

Ricos em geral se esquecem de que a vida fracassa inevitável e constantem­ente. Viajam para cidades bacanas em finais de semana, compram coisas legais, quando não se deprimem em Paris ou em Trancoso.

Gente comum fica onde quer que viva todo fim de semana e não tem grana para comer fora. O tédio só é “resolvido” pelo número de problemas concretos que os sufocam. Nem tomam vinho para falar do horror que é o Bolsonaro.

A igreja os acolhe, dá emprego, programa de final de semana, namoradas para os filhos, enfim, cidadania. Esse Deus brega venceu o ateísmo gourmet. “Deus” é um exemplo evidente da alienação que caracteriz­a o vexame da elite intelectua­l. O mundo inteiro tem nele um “amigo”, e nós torcemos o bico quando se fala dele. Deus acolhe os que sofrem. E quem acolhe, de fato, são as igrejas. E você, que paga R$ 700 a sessão de análise, não me venha falar do dízimo, ok?

E a família? Há décadas dizemos que ela é patriarcal, opressora e causadora de tudo de ruim que existe no mundo. Esquecemos que, ruim ou boa, quem não pode se deprimir em Paris ou em Trancoso só tem a família quando tem febre, diarreia ou fica triste.

A pobreza de espírito com a qual a inteligênc­ia pública tem tratado o tema chega a ser chocante. E quem não mente sabe que famílias disfuncion­ais ou inexistent­es são piores do que seu contrário.

Um exemplo evidente é que, quando se diz que mães solteiras têm mais dificuldad­e de criar seus filhos (o que é óbvio e todo mundo sabe, inclusive o mundo “científico”), os inteligent­inhos saem gritando “preconceit­o, preconceit­o!”. Uma coisa é reconhecer o fato e o direito de alguém ter um filho sozinha (ou sozinho), outra é que esse seja o melhor formato.

Os fatos fragmentad­os da vida tornam-se narrativas, com um mínimo de significad­o, quando conseguem perfazer um “todo” de sentido, mediante costumes cotidianos que os enlaçam. Costumes são os marcadores pelos quais reconhecem­os nós mesmos, e a nossos valores, no dia a dia da guerra que é a vida.

Um exemplo de “costume” é o medo de que uma filha fique grávida solteira, de que um filho comece a usar drogas, de que um marido ou pai perca a cabeça por uma mulher mais jovem e largue tudo, ou de que uma esposa ou mãe desista dos filhos e decida “ser feliz”.

Ideias caretas demais? Talvez. Pensando como niilista, talvez Deus não exista mesmo, as famílias sejam uma farsa e os costumes nada mais do que modos ultrapassa­dos e opressores de viver. Quem sabe, em quatro anos, tenhamos um candidato niilista e, aí então, teremos alguém que nos represente.

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