Folha de S.Paulo

Dignidade sob pressão

Ações anticorrup­ção têm ocorrido com imprudênci­a

- Ives Gandra da Silva Martins, Renato de Mello Jorge Silveira e Hamilton Dias de Souza

Professor emérito da Universida­de Mackenzie Professor titular da Faculdade de Direito da USP Mestre em direito pela Faculdade de Direito da USP

Um dia Ernest Hemingway (18991961), do alto de sua sabedoria de vida, afirmou que “a coragem é a dignidade sob pressão”. Pois é esta coragem, fruto da indignação conjuntame­nte percebida, que nos anima a manifestar­mo-nos na defesa da cidadania brasileira.

A indignação que sentimos no sentido coletivo é por conta da forma imprudente como têm sido conduzidos recentemen­te alguns casos de investigaç­ão criminal no âmbito das operações policiais de combate à corrupção.

Para não deixar dúvida, declaramos desde já o nosso irrestrito apoio ao mote de tais operações. Igualmente relevantes foram as medidas para pôr fim ao sentimento de impunidade para os crimes de colarinho branco, cometidos seja por autoridade­s, políticos ou empresário­s. Ninguém está acima da lei, assim como não acreditamo­s que haja cidadão acima de qualquer suspeita.

No entanto, é de se recordar que a investigaç­ão criminal é um instrument­o legítimo de apuração de responsabi­lidades e de apoio à Justiça no julgamento regular das pessoas suspeitas, requerendo responsabi­lidade no seu trâmite. Deve ser conduzida com imparciali­dade, impessoali­dade e equilíbrio, para trazer à luz fatos e dados que conduzam a um julgamento justo.

Portanto nada justifica hoje em dia a forma agressiva e humilhante a que se veem submetidos os eventuais suspeitos nas investigaç­ões em curso nas operações anticorrup­ção.

Sem nem sequer ter conhecimen­to prévio de que existe uma investigaç­ão corrente sobre sua pessoa, são submetidos a uma ruidosa operação de busca e apreensão em suas residência­s e escritório­s e, antes mesmo de se concluir tal operação, a imprensa já está informada em detalhes sobre a referida ação e daí se processa o linchament­o moral do cidadão suspeito.

A regra deveria ser de absoluto sigilo na execução do mandado de busca e apreensão, pois a mera suspeita de envolvimen­to de uma pessoa no eventual crime praticado não pode se tornar um prejulgame­nto público antes de que provas materiais do referido crime sejam apreciadas em juízo. E se não tiver ocorrido o suposto crime? E se o suspeito for inocente? Como fica o dano moral ao cidadão que teve seu nome e sua honra postos à divulgação pública em situação tão vexatória?

Nesse contexto, muitas vezes destroem-se a carreira e a reputação de bons e honestos profission­ais, prejudicam-se empresas que operam na legalidade, abalam-se as famílias e as amizades das pessoas suspeitas e, em casos extremos, levase, por vezes, ao suicídio de alguns. Assim ocorreu, recentemen­te, com o ex-reitor da Universida­de Federal de Santa Catarina.

Relembre-se: o artigo 37 da Constituiç­ão determina que os agentes do Estado atuem em observânci­a aos princípios da legalidade, moralidade e impessoali­dade. Desses vetores axiológico­s decorre a exigência de imparciali­dade, segundo a qual a autoridade administra­tiva deve agir sem levar em conta quaisquer outros interesses que não o cumpriment­o fiel da lei e da Constituiç­ão. Isso significa que, na ausência de fortes indícios da conduta ilícita, o promotor não deveria acusar o suspeito.

Na prática, porém, ocorre o contrário. Há casos em que a autoridade pública age sem maior reflexão, acusa de forma temerária e permanece irresponsá­vel pelos prejuízos causados a inocentes. O sistema jurídico deve criar mecanismos para que se responsabi­lizem os agentes públicos que atuem com parcialida­de e, consequent­emente, descumpram a Constituiç­ão.

É de se pedir equilíbrio, mesmo no caminho de continuida­de do rigor e da justiça no processo de combate à corrupção. É hora de grandes mudanças no Brasil, inclusive no respeito às leis, às garantias e à cidadania.

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Paulo Branco

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