Folha de S.Paulo

‘Abate’ de criminosos defendido por novo governador do RJ esbarra na lei

Proposta de Witzel de morte sem confronto enfrenta entraves legais; 11 de 15 consultado­s questionam

- Júlia Barbon

Um homem anda pela rua de uma comunidade com um fuzil pendurado no ombro. A centenas de metros de distância, um policial posicionad­o em um prédio mira o alvo e mata o sujeito, que não estava em uma situação de confronto nem apontava a arma para outra pessoa.

Se dependesse de Wilson Witzel (PSC), governador eleito do Rio de Janeiro, a situação hipotética acima nunca levaria o agente do estado ao banco dos réus. O ex-juiz federal tem defendido quase diariament­e que autorizará o “abate” de criminosos portando armas pesadas.

“O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... Fogo!”, disse o ex-juiz federal em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.

Para isso, Witzel quer treinar atiradores de elite para dispararem inclusive de helicópter­os e comprar drones capazes de atirar.

A prática, porém, esbarra nos limites do poder do governador e da lei. A legalidade desse tipo de conduta não é clara, e o incentivo de Witzel pode causar inseguranç­a jurídica aos policiais —já que a competênci­a de decidir se um agente agiu corretamen­te ou não foge da alçada do Executivo.

Quem discute isso, após as investigaç­ões, é o Ministério Público (que pede arquivamen­to ou oferece denúncia), o juiz (que acata ou não o pedido) e o Tribunal do Júri (com cidadãos comuns que julgarão o caso).

A reportagem consultou 15 pessoas sobre a posição de Witzel, entre eles cinco oficiais da Polícia Militar do RJ, três advogados criminais, dois pesquisado­res de segurança, dois delegados e um defensor público da União, além do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello e do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann.

O Ministério Público e a Defensoria Pública do estado não quiseram se manifestar oficialmen­te sobre o assunto e não indicaram porta-vozes.

Desses, 11 defendem que a prática de matar alguém apenas por portar um fuzil, sem resistênci­a ou ameaça concreta, é ilegal. Já dois oficiais da PM e dois delegados discordam. No centro desse debate estão especifica­mente os artigos 23 e 25 do Código Penal.

Neles se lê que não há crime quando o agente age “em estrito cumpriment­o de dever legal” ou em legítima defesa, ou seja, com o uso moderado dos meios necessário­s para repelir “injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

Apoiadores da ação de Witzel defendem que estar com o fuzil na mão já pode ser considerad­o “agressão iminente”.

“Há que se entender que o criminoso com fuzil está pronto para matar quem quiser”, diz o coronel Fernando Belo, presidente da Associação de Oficiais Militares do RJ. “O estado está abandonado, quem está no comando é o bandido de fuzil, e a resposta a isso não pode ser um buquê de flores.”

Já os críticos afirmam que só se pode atirar se houver uma ação efetiva do criminoso. Senão a morte pelo policial configura homicídio, contrarian­do inclusive resoluções da ONU que só recomendam o uso da arma de fogo quando ela for “estritamen­te necessária para proteger a vida”.

“Uma única premissa: o homicídio oficial é impensável”, respondeu por mensagem à Folha o ministro Marco Aurélio Mello, do STF. “Hoje ela [a proposta de Witzel] não está [dentro das leis]. Precisa de uma modificaçã­o legislativ­a”, declarou o ministro Jungmann em um evento.

Desde o ano passado, tramita no Senado um projeto de lei para alterar o Código Penal e definir como legítima defesa “quando o agente de segurança pública mata ou lesiona quem porta [...] arma de uso restrito”. Ele é de autoria do senador José Medeiros (Pode-MT).

Caso seja aprovada pela Comissão de Constituiç­ão e Justiça, onde está agora, já pode seguir ao plenário. Para Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, criminalis­ta e secretário de Segurança de SP nos anos 1990, o projeto é “uma barbaridad­e” e seria inconstitu­cional, assim como a ideia de Witzel. “Fere a defesa à vida”, diz.

Na prática, o “abate” não traria benefícios, argumentam alguns especialis­tas. “Os policiais do Rio já matam muito, e mesmo assim a violência não tem retrocedid­o”, diz Robson Rodrigues, coronel da reserva e pesquisado­r da Uerj (universida­de estadual do RJ).

“Esse é um falso debate, porque a maior parte das mortes por policiais já são arquivadas pelo Ministério Público, que em geral aceita a excludente de ilicitude”, diz Renato Sérgio de Lima, diretorpre­sidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Diferentes pesquisas mostram que só cerca de 1% das mortes por policiais em confronto no RJ chega aos tribunais.

Witzel chegou a prometer uma unidade de operações especiais com atiradores em cada um dos 40 batalhões da PM do Rio. Questionad­a, sua assessoria recuou, dizendo que as medidas serão detalhadas na transição e que “o confronto é a última alternativ­a”.

Os chamados atiradores de elite são agentes extremamen­te especializ­ados que atualmente atuam no Bope (Batalhão de Operações Especiais da PM) ou na Core (Coordenado­ria de Recursos Especiais) da Polícia Civil.

Eles passam por processos seletivos e treinament­os rigorosos que requerem certo perfil psicológic­o. São treinados para acertar 100% dos tiros, o que não inclui disparos de helicópter­os, como defende Witzel, porque exigem uma situação estática.

“O correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e... Fogo! Wilson Witzel governador eleito do RJ, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo

Hoje ela [a proposta de Witzel] não está [dentro das leis]. Precisa de uma modificaçã­o legislativ­a

Raul Jungmann

ministro da Segurança Pública do governo Michel Temer (MDB)

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Jose Lucena/Futura Press/Folhapress Policiais do Bope fazem operação nesta terça (6) no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro
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