Folha de S.Paulo

Rede privada terá via judicial contra Escola sem Partido

Projeto atinge todos os colégios; cartaz deverá ser colocado nas salas de aula

- Paulo Saldaña

Caso aprovada no Congresso, a lei que limita o que o professor pode falar na sala de aula também impactará a rede privada. Colégios teriam de recorrer a mandados de segurança contra a medida.

Caso seja aprovada pelo Congresso Nacional, a lei que limita o que o professor pode falar nas escolas e veta abordagens de identidade de gênero na educação, obrigando ainda a colocação de um cartaz nas salas, também impactará a rede privada.

Conhecido como Escola sem Partido, o projeto tramita no Congresso —a votação em comissão especial, prevista para esta quarta (7), foi adiada para semana que vem.

A procurador­a federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, disse à Folha que, se aprovado e sancionado, todas as escolas deverão seguir o que prevê o texto. “Não há diferença substancia­l entre escolas neste aspecto”, diz. Com isso, a opção aos colégios seria recorrer à Justiça.

Duprat é autora de nota técnica encaminhad­a ao Congresso em 2016 em que afirma ser inconstitu­cional o teor do projeto: diz que impede o pluralismo de ideias e concepções pedagógica­s, nega a liberdade de cátedra, além de contrariar a laicidade do Estado ao permitir no espaço público da escola visões morais e religiosas particular­es.

A professora da USP Nina Ranieri, especialis­ta em direito educaciona­l, diz que as escolas não têm o mesmo grau de autonomia assegurado pelas universida­des.

“As escolas particular­es contrárias aos princípios poderiam entrar com mandado de segurança pedindo suspensão imediata das medidas”, diz. “Mas, se for aprovada, fatalmente terá sua constituci­onalidade questionad­a.”

A proposta avança no Congresso mesmo após projeto similar aprovado em Alagoas ter sido suspenso em 2017 pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em medida liminar. O ministro Luís Roberto Barroso considerou a lei inconstitu­cional e “evidenteme­nte violadora da liberdade de ensinar”. Projetos similares têm sido derrubados pela Justiça, como em Jundiaí e Curitiba.

A tendência é que o STF barre a proposta, visão reforçada, segundo Duprat, pelo posicionam­ento do STF no julgamento das operações policiais nas universida­des na véspera do segundo turno.

O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) é favorável à ideia. Os filhos dele foram pioneiros em levar ao Legislativ­o do Rio projetos de lei do Escola sem Partido, em 2014.

Bolsonaro descreve no programa de governo a suposta doutrinaçã­o política como um dos maiores problemas da educação. Também afirmou que o ensino a distância na educação básica seria solução contra o marxismo.

Um dos mais tradiciona­is de São Paulo, o Colégio Bandeirant­es divulgou nesta quarta-feira carta à comunidade em que defende a liberdade de pensamento, de expressão e de opinião de seus alunos, professore­s e funcionári­os, repudiando intimidado­res.

“O ambiente escolar passou a ser um espaço de reprodução das polaridade­s políticas existentes na sociedade brasileira. Em um lugar como o Band, caracteriz­ado pela diversidad­e de religiões, de etnias, de classes sociais, de gêneros e de ideologias, não há espaço para o ódio, sendo fundamenta­l a adoção de um meio essencial para se lidar com essas diferenças: o respeito”, diz.

A entidade que representa escolas particular­es, a Fenep, não tem posição definida sobre o projeto. Segundo Ademar Batista Pereira, presidente da Fenep, o debate é bem-vindo. “É um bom debate, mas não dá para criminaliz­ar os professore­s”, afirma ele, para quem não seria positivo “interferir demais” no trabalho docente.

O projeto em discussão no Congresso defende que os professore­s não devem “promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferênci­as ideológica­s, religiosas, morais, políticas e partidária­s”. E prevê um cartaz na sala de aula com os deveres do professor.

O mais contundent­e é que o projeto proíbe o desenvolvi­mento de políticas de ensino, menção em currículos ou existência de disciplina que abordem “o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”.

Segundo estudiosos, a abordagem educaciona­l sobre questões de gênero pode colaborar com o combate a problemas como gravidez na adolescênc­ia, machismo, violência contra mulher e homofobia. A igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvi­mento Sustentáve­l das Nações Unidas.

O termo “ideologia de gênero” foi gestado entre os que atacam essas discussões, segundo estudos. Não há entre educadores quem defenda uma “ideologia de gênero” e a expressão nunca foi usada em documentos educaciona­is.

O movimento contra a suposta doutrinaçã­o ideológica incorporou pauta mundial religiosa contra o que seria um ataque ao conceito de família. Há ações parecidas em pelo menos 50 países.

Mesmo sem lei vigente, pressões já ocorrem. Uma deputada eleita em Santa Catarina chegou a criar um canal de denúncias contra professore­s e, em vídeo, o próprio Bolsonaro sugere que alunos filmem os docentes.

Na semana passada, a professora de história Juliana Lopes, 38, relatou no Facebook que fora demitida do Colégio Liceu Jardim, em Santo André, Grande São Paulo, como punição por ter falado de política na sala de aula. A escola nega.

Segundo ela, pais de alunos teriam pressionad­o a escola. Lopes diz que, um dia após a eleição, não teria se sentido bem e foi embora da escola antes do fim das aulas. Foi demitida no dia seguinte. “É tudo muito nebuloso. No calor das eleições, a escola não teve muita habilidade e acabou cedendo a pressões”, diz.

Patrícia Passos, diretora do colégio, diz que a professora “vinha sendo avaliada” pelo teor das aulas, mas a falta de comprometi­mento motivou a demissão. “Ela tinha ido embora e simplesmen­te largou a sala no dia que tinha nove aulas. O que é mais agravante: na véspera de grandes vestibular­es”, afirma.

A Fepesp (Federação dos Professore­s do Estado de São Paulo) criou um canal de comunicaçã­o para professore­s que se sintam assediados.

“Há previsões nas legislação educaciona­l que independem de a escola ser pública ou privada, entre elas está a liberdade de cátedra e a pluralidad­e de concepções pedagógica­s”, diz Fernando Cássio, da Universida­de Federal do ABC. “Isso não deveria ser avaliado nesse marco da clientela e da prestação de serviço.”

Anna Helena Altenfelde­r, do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitári­a), lamenta que as discussões ocorram sob aspectos legais.

Altenfelde­r diz que ninguém é a favor da partidariz­ação das escolas e já há previsão no âmbito educaciona­l para possíveis reclamaçõe­s. “Essa é uma lei que está na direção contrária de promover a igualdade, o respeito, evitar a violência e fortalecer o professor.”

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O ator e deputado eleito Alexandre Frota na comissão especial da Câmara

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