Rede privada terá via judicial contra Escola sem Partido
Projeto atinge todos os colégios; cartaz deverá ser colocado nas salas de aula
Caso aprovada no Congresso, a lei que limita o que o professor pode falar na sala de aula também impactará a rede privada. Colégios teriam de recorrer a mandados de segurança contra a medida.
Caso seja aprovada pelo Congresso Nacional, a lei que limita o que o professor pode falar nas escolas e veta abordagens de identidade de gênero na educação, obrigando ainda a colocação de um cartaz nas salas, também impactará a rede privada.
Conhecido como Escola sem Partido, o projeto tramita no Congresso —a votação em comissão especial, prevista para esta quarta (7), foi adiada para semana que vem.
A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, disse à Folha que, se aprovado e sancionado, todas as escolas deverão seguir o que prevê o texto. “Não há diferença substancial entre escolas neste aspecto”, diz. Com isso, a opção aos colégios seria recorrer à Justiça.
Duprat é autora de nota técnica encaminhada ao Congresso em 2016 em que afirma ser inconstitucional o teor do projeto: diz que impede o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, nega a liberdade de cátedra, além de contrariar a laicidade do Estado ao permitir no espaço público da escola visões morais e religiosas particulares.
A professora da USP Nina Ranieri, especialista em direito educacional, diz que as escolas não têm o mesmo grau de autonomia assegurado pelas universidades.
“As escolas particulares contrárias aos princípios poderiam entrar com mandado de segurança pedindo suspensão imediata das medidas”, diz. “Mas, se for aprovada, fatalmente terá sua constitucionalidade questionada.”
A proposta avança no Congresso mesmo após projeto similar aprovado em Alagoas ter sido suspenso em 2017 pelo STF (Supremo Tribunal Federal), em medida liminar. O ministro Luís Roberto Barroso considerou a lei inconstitucional e “evidentemente violadora da liberdade de ensinar”. Projetos similares têm sido derrubados pela Justiça, como em Jundiaí e Curitiba.
A tendência é que o STF barre a proposta, visão reforçada, segundo Duprat, pelo posicionamento do STF no julgamento das operações policiais nas universidades na véspera do segundo turno.
O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) é favorável à ideia. Os filhos dele foram pioneiros em levar ao Legislativo do Rio projetos de lei do Escola sem Partido, em 2014.
Bolsonaro descreve no programa de governo a suposta doutrinação política como um dos maiores problemas da educação. Também afirmou que o ensino a distância na educação básica seria solução contra o marxismo.
Um dos mais tradicionais de São Paulo, o Colégio Bandeirantes divulgou nesta quarta-feira carta à comunidade em que defende a liberdade de pensamento, de expressão e de opinião de seus alunos, professores e funcionários, repudiando intimidadores.
“O ambiente escolar passou a ser um espaço de reprodução das polaridades políticas existentes na sociedade brasileira. Em um lugar como o Band, caracterizado pela diversidade de religiões, de etnias, de classes sociais, de gêneros e de ideologias, não há espaço para o ódio, sendo fundamental a adoção de um meio essencial para se lidar com essas diferenças: o respeito”, diz.
A entidade que representa escolas particulares, a Fenep, não tem posição definida sobre o projeto. Segundo Ademar Batista Pereira, presidente da Fenep, o debate é bem-vindo. “É um bom debate, mas não dá para criminalizar os professores”, afirma ele, para quem não seria positivo “interferir demais” no trabalho docente.
O projeto em discussão no Congresso defende que os professores não devem “promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”. E prevê um cartaz na sala de aula com os deveres do professor.
O mais contundente é que o projeto proíbe o desenvolvimento de políticas de ensino, menção em currículos ou existência de disciplina que abordem “o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”.
Segundo estudiosos, a abordagem educacional sobre questões de gênero pode colaborar com o combate a problemas como gravidez na adolescência, machismo, violência contra mulher e homofobia. A igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.
O termo “ideologia de gênero” foi gestado entre os que atacam essas discussões, segundo estudos. Não há entre educadores quem defenda uma “ideologia de gênero” e a expressão nunca foi usada em documentos educacionais.
O movimento contra a suposta doutrinação ideológica incorporou pauta mundial religiosa contra o que seria um ataque ao conceito de família. Há ações parecidas em pelo menos 50 países.
Mesmo sem lei vigente, pressões já ocorrem. Uma deputada eleita em Santa Catarina chegou a criar um canal de denúncias contra professores e, em vídeo, o próprio Bolsonaro sugere que alunos filmem os docentes.
Na semana passada, a professora de história Juliana Lopes, 38, relatou no Facebook que fora demitida do Colégio Liceu Jardim, em Santo André, Grande São Paulo, como punição por ter falado de política na sala de aula. A escola nega.
Segundo ela, pais de alunos teriam pressionado a escola. Lopes diz que, um dia após a eleição, não teria se sentido bem e foi embora da escola antes do fim das aulas. Foi demitida no dia seguinte. “É tudo muito nebuloso. No calor das eleições, a escola não teve muita habilidade e acabou cedendo a pressões”, diz.
Patrícia Passos, diretora do colégio, diz que a professora “vinha sendo avaliada” pelo teor das aulas, mas a falta de comprometimento motivou a demissão. “Ela tinha ido embora e simplesmente largou a sala no dia que tinha nove aulas. O que é mais agravante: na véspera de grandes vestibulares”, afirma.
A Fepesp (Federação dos Professores do Estado de São Paulo) criou um canal de comunicação para professores que se sintam assediados.
“Há previsões nas legislação educacional que independem de a escola ser pública ou privada, entre elas está a liberdade de cátedra e a pluralidade de concepções pedagógicas”, diz Fernando Cássio, da Universidade Federal do ABC. “Isso não deveria ser avaliado nesse marco da clientela e da prestação de serviço.”
Anna Helena Altenfelder, do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), lamenta que as discussões ocorram sob aspectos legais.
Altenfelder diz que ninguém é a favor da partidarização das escolas e já há previsão no âmbito educacional para possíveis reclamações. “Essa é uma lei que está na direção contrária de promover a igualdade, o respeito, evitar a violência e fortalecer o professor.”