Folha de S.Paulo

Dos motivos de Antônio

Discurso que culpa algum grupo da sociedade pela crise pode ter ganho apelo na eleição

- Laura Carvalho Professora da Faculdade de Economia, Administra­ção e Contabilid­ade da USP, autora de “Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico”

Em coluna publicada nesta Folha na segunda (5), o professor Marcus André Melo ressaltou a necessidad­e de olhar a onda conservado­ra ao redor do mundo a partir de lentes distintas.

Enquanto no Reino Unido ou nos Estados Unidos a perda de empregos industriai­s derivada da globalizaç­ão poderia explicar o apelo do populismo de direita, o mesmo não valeria para países como o Brasil, que, ao contrário, surfaram na onda do forte cresciment­o chinês e do boom das commoditie­s nos anos 2000.

“Não houve revolta de perdedores da globalizaç­ão nem contra elites internacio­nalistas. Pelo contrário: foi sob a égide de um redistribu­tivismo forte que sobreveio um desvario fiscal de amplas consequênc­ias. (...)”

“Foi assim a frustração dos ‘ganhadores da globalizaç­ão’, sua revolta contra a corrupção e a reversão brutal de expectativ­as que balançaram o pêndulo dos eleitores de média renda e baixa identidade programáti­ca. Não foram ameaças a seu status que geraram a reação”, conclui Melo.

Não há dúvidas de que o cenário externo favorável foi fundamenta­l para que o país conseguiss­e combinar, nos anos 2000, cresciment­o econômico maior, equilíbrio fiscal e redução das desigualda­des na base da pirâmide.

A universali­zação de benefícios sociais, a valorizaçã­o do salário mínimo e a geração de empregos formais em setores de serviços e construção civil contribuír­am para que a renda dos mais pobres crescesse em um ritmo maior do que a renda média.

O que não houve foi redistribu­ição do topo para a base. Os 10% mais ricos mantiveram sua alta parcela na renda nacional, causando o fenômeno que o pesquisado­r Marc Morgan, da Paris School of Economics, chamou de “classe média espremida”: as faixas intermediá­rias perderam participaç­ão na renda nacional entre 2002 e 2014.

Desde a desacelera­ção da economia e, sobretudo, na recessão de 2015 e 2016, esses trabalhado­res viram sua situação econômica se deteriorar também em termos absolutos.

Como apontei na coluna “A escolha de Antônio”, na quinta (1º), os dados do Datafolha sugerem que a maior perda de votos do PT nessas eleições presidenci­ais em relação a 2014 se deu justamente entre os trabalhado­res com diploma de ensino médio e renda familiar mensal entre dois e cinco salários mínimos, cujos domicílios estão situados na faixa entre os 40% mais pobres e os 20% mais ricos.

Não é possível, portanto, afastar a hipótese de que, assim como no caso dos perdedores da globalizaç­ão nos países ricos, a inseguranç­a econômica pesou para a migração de votos de trabalhado­res de classe média baixa no Brasil.

Diante do desemprego crescente e da estagnação de salários, o discurso que direciona a culpa a algum grupo da sociedade —o imigrante, as minorias, os comunistas ou os “corruptos do PT”— pode ter ganho apelo.

Em artigo recente intitulado “Brazil Divided: Hindsights on the Growing Politicisa­tion of Inequality”, Morgan e Gethin mostram, a partir de dados do Datafolha, que a faixa dos 40% intermediá­rios na distribuiç­ão de renda atribui maior peso na escolha de seu candidato à corrupção e à segurança do que os 50% mais pobres e ao emprego e à saúde do que os 10% mais ricos.

Quando se emplaca o discurso de que a falta de emprego, renda e saúde pública de qualidade é culpa da “roubalheir­a do PT”, fica um pouco mais difícil separar as coisas.

Aqui, como lá fora, é tarefa do pesquisado­r se debruçar sobre tais fenômenos sem perder de vista a sua complexida­de, identifica­ndo tanto os traços comuns quanto os particular­es. Dados não faltam.

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