Folha de S.Paulo

Verdades inteiramen­te falsas

Calúnia política é notícia velha, mas as ‘fake news’ são outra coisa

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Há uns meses, discuti com um amigo sobre um tema que paira no ar dessa festa estranha com gente esquisita que o Brasil e o mundo viraram: a epidemia de “fake news” —ou seja, notícia falsa. Os puristas reclamam da estrangeir­ice da expressão. Como sempre, erram o alvo.

Tanto meu amigo como eu tínhamos nossas doses de razão. Ele estava certo de lembrar que a calúnia política não é nova e que desde a antiguidad­e somos uma espécie afeita à malícia. De “news”, o “fake” não tem nada.

“Maria Antonieta tripudia: ‘Se não têm pão, comam brioches.’” A frase não daria um bom tuíte do tipo que batalhões de bots ( já cabe o neologismo “botalhões”?) compartilh­am hoje em dia com velocidade pós-humana? Pois é mentira, uma irmã mais velha —menos pirada, igualmente canalha— da mamadeira erótica.

Maria Antonieta não disse aquilo. O kit gay é uma lenda. A Folha não pertence a Lula. D. João 6º não era um imbecil. A vizinha bonita não voava de vassoura em noites de luar. Marielle Franco não namorava um traficante.

Meu amigo acertou ao apontar a longa história da exploração de ignorância e instinto de manada, quase sempre num contexto de medo. Mas deixou de lado um aspecto crucial das “fake news”: a novidade não é a mensagem, mas o meio.

Nunca fomos tão equipados para afogar o mundo em mentiras. A distância entre a velha notícia falsa e a de hoje é a que existe entre uma bucólica rodinha na praça e as viciantes mídias sociais.

Não se trata de uma diferença apenas quantitati­va de velocidade e alcance. Esta é vertiginos­a, mas sugere uma diferença maior, qualitativ­a, como a que há entre um objeto físico e sua representa­ção digital. É por isso que o nome em inglês cai bem: fato novo, palavras novas.

Podemos deixar de lado por enquanto as consideraç­ões a respeito do impacto exercido sobre nossos padrões de convivênci­a por essa goleada do simulacro, esse descolamen­to drástico entre os planos do símbolo e da realidade que o mundo virtual promove.

Fiquemos com um problema mais imediato: como impedir que falências cognitivas de massa sejam induzidas por redes virtuais de montagem relativame­nte barata para debilitar e, no limite, matar a democracia representa­tiva. Se não estivermos à altura do desafio, o que haverá para representa­r?

O caso da questão do Enem sobre a gíria gay chamada pajubá é enrolado. A baixa qualidade técnica de uma questão desprovida de resposta certa dá munição a reações oportunist­as —ideológica­s e nada técnicas— como a de Bolsonaro.

Como observou Marcos Bagno, um dos maiores linguistas do país, em sua página no Facebook, o Enem erra ao chamar o pajubá de dialeto, palavra reservada ao modo de falar de comunidade­s geografica­mente demarcadas. Trata-se de um “socioleto” ou, para simplifica­r, uma gíria.

Além disso, a resposta supostamen­te certa sustenta que ele “ganha status de dialeto” por “ser consolidad­o por objetos formais de estudo” —no caso, um “dicionário” que é mero glossário amadorísti­co. Mesmo que o dicionário fosse rigoroso, supor que fatos linguístic­os dependam da lexicograf­ia para se constituir é absurdo.

Some-se a isso a fala obscuranti­sta do presidente eleito (“Uma questão de prova que entra na dialética, na linguagem secreta de travesti, não tem nada a ver, não mede conhecimen­to nenhum”), com a cereja da confusão entre “dialética” e “dialeto”, e o resultado é uma triste comédia de erros.

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