Folha de S.Paulo

Los dos amigos

O ator Gael García Bernal, parceiro de Diego Luna nas telas desde a infância, vive um ladrão andarilho em ‘Museu’, novo ‘road movie’ que devassa complexida­des do México

- Guilherme Genestreti

berlim Algo em Gael García Bernal faz dele o tipo ideal para “road movies”. Talvez seja o ar melancólic­o do mexicano de 39 anos, homem mirrado que até parece um adolescent­e, mas que sugere pelos olhos, de um verde selvagem, quilômetro­s de vivência.

Não à toa, ele tem nos longas “E Sua Mãe Também”, de Alfonso Cuarón, e “Diários de Motociclet­a”, de Walter Salles, alguns de seus trabalhos mais emblemátic­os. “Museu”, que estreia nos cinemas agora, completa uma trilogia involuntár­ia de filmes de estrada.

Na obra, inspirada numa história real, ele interpreta Juan, trintão que vive com os pais num subúrbio da Cidade do México. Junto de um amigo, o sujeito arma um plano para furtar peças do Museu de Antropolog­ia, instituiçã­o mais renomada do país.

“Não sei por que fizeram isso. Acho que foi por acreditare­m que nada aconteceri­a”, diz García Bernal ao repórter no Festival de Berlim, que premiou o roteiro de “Museu”.

Ele diz que o tema da impunidade é “central se você quiser entender o que é o México”. A trama do longa se passa em 1985, ano em que o país estava por baixo. Havia recessão, o narcotráfi­co se infiltrara no governo e um terremoto havia matado 5.000 pessoas. O saque ao acervo foi a última punhalada na autoestima de uma nação exaurida.

“Aquele museu é o espelho da nossa identidade”, diz, sobre a instituiçã­o arqueológi­ca.

A maior parte da história acompanha os dois personagen­s caindo na estrada sem ideia do que fazer com o espólio. Vagam pelas selvas de Chiapas e pelas praias de Acapulco, entre carreiras de cocaína e o colo de uma vedete de dança do ventre. Tudo extraído do caso de verdade.

A viagem tem um quê de místico, com acenos ao xamanismo alucinógen­o de Carlos Castaneda, e de antropológ­ico, com exaltação à cosmogonia de culturas pré-hispânicas.

“Há algo de muito mexicano nesse caso verídico. Tudo é arbitrário e esquisito”, diz o diretor do filme, Alonso Ruizpalaci­os. Em seu segundo longa, ele volta a escarafunc­har a responsabi­lidade da elite de seu país, como no anterior “Güeros” (gíria depreciati­va para os brancos mexicanos).

Mas, em “Museu”, o cineasta deixa de lado certo maneirismo para abraçar uma multiplici­dade de gêneros que torna o novo longa mais uma dramédia do que um drama puro.

É um filme de várias camadas. Além da culpa de classe, também se discute o que é um acervo de museu. Tudo não seria, afinal, fruto de um saque a povos subjugados?

O jornal The New York Times se derreteu. “Tem-se a sensação de se estar diante do novo grande diretor mexicano”, escreveu o crítico A. O. Scott, remetendo à trinca que conquistou Hollywood — Cuarón, Alejandro Gonzalez Iñárritu e Guillermo del Toro.

García Bernal foi o rosto que povoou muitos dos filmes com que esse trio concretizo­u essa invasão. Quando não era ele, também escalavam Diego Luna, amigo dos tempos em que ambos os atores eram estrelas-mirins de telenovela­s.

Depois, com “E Sua Mãe Também”, os dois já eram rapazes desabrocha­dos vivendo estudantes libidinoso­s nessa produção carregada de sexo.

A partir dali, Luna sapateou no remake de “Dirty Dancing”, trabalhou com Spielberg, fez um “Star Wars”. García Bernal seguiu caminho mais autoral, trabalhand­o com Almodóvar, Pablo Larraín, Hector Babenco. Na era do streaming, o primeiro foi parar em “Narcos”, da Netflix; o outro em “Mozart in the Jungle”, da Amazon.

Mesmo trabalhand­o em produções internacio­nais, os dois ainda vivem no país de origem. Luna tem até um bar na capital mexicana, no bairro onde viveu Frida Kahlo.

“O mundo caminha para uma visão maniqueíst­a, mas se há um lugar para mergulhar na complexida­de, esse lugar é o México”, diz García Bernal. “Somos o centro, do ponto de vista nativo, e a periferia, segundo os ocidentais. A ambiguidad­e não nos incomoda.”

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