Elenco e direção levam as ambivalências de Chacrinha ao cinema
Longa dirigido por Andrucha Waddington acerta ao mostrar também a faceta irascível e prepotente do apresentador
Chacrinha - O Velho Guerreiro
Brasil, 2017. Direção: Andrucha Waddington. Elenco: Stepan Nercessian, Eduardo Sterblitch, Gianne Albertoni, Laila Garin. Estreia nesta quinta (8)
são paulo “Quem não se comunica se trumbica!”, anunciava Chacrinha.
Fosse jovem nos dias de hoje o pernambucano Abelardo Barbosa (1917-1988) poderia ser um desses youtubers com milhões de seguidores. Era extraordinário o seu talento para a comunicação. Combinava irreverência, espontaneidade e tino comercial.
Em uma época muito distante da internet, ele tomou o caminho do rádio.
Abelardo chegou ao Rio nos final dos anos 1930 e logo ganhou a atenção do público na modesta emissora Fluminense. Como a rádio ficava em uma chácara em Niterói, ele batizou o programa de “Rei Momo na Chacrinha”.
Passou por rádios de maior audiência até que, na década de 1950, aderiu à TV, recémlançada no Brasil. Exibiu suas chacretes e seus calouros na Tupi, na Excelsior e alcançou a consagração na Globo.
Esse Chacrinha digno de admiração está no filme dirigido por Andrucha Waddington. Junto com ele, porém, surge um homem menos conhecido, insensível, detestável às vezes.
Andrucha e o roteirista Claudio Paiva evitam o tom laudatório que costuma afundar as cinebiografias. Estão na tela a criatividade e a inquietude de Chacrinha, mas seu retrato definitivamente não é róseo.
No programa de auditório, o apresentador promoveu jovens nomes da música brasileira, como Caetano Veloso e o grupo Secos & Molhados. Por outro lado, como o filme reitera, não titubeou em recorrer a quadros apelativos quando a audiência fraquejava.
Além disso, era um sujeito irascível e prepotente longe das câmeras.
Esse jogo de ambivalências, demasiadamente humano, se mantém atraente ao longo das quase duas horas de filme, graças à direção precisa de Andrucha. Seu oitavo longa de ficção indica uma depuração do estilo.
Mas o mérito não se restringe ao cineasta. O desempenho dos atores principais é notável. Na pele do apresentador quando jovem, Eduardo Sterblitch combina ambição, sagacidade e prazer pela vida carioca.
Essa leveza, porém, se esvai com o passar dos anos. O sucesso na TV não parece dar o alento necessário ao Velho Guerreiro, preocupado com as finanças, incapaz de viver em harmonia com os familiares, magoado com colegas da TV.
Esse Chacrinha adulto, cuja vivacidade no palco mascara conflitos diversos, é fruto de uma grande interpretação de Stepan Nercessian.
Como nos filmes mais recentes de Selton Mello, “Chacrinha” demonstra a viabilidade de um cinema brasileiro de interesse abrangente que não insulta o público com um humor tacanho.
A Prece
(La prière). França, 2018. Direção: Cédric Kahn. Elenco: Anthony Bajon, Alex Brendemühl, Hanna Schygulla. 14 anos. Estreia nesta quinta (8) “A Prece” começa com um rapaz de olhar tenso a caminho de um lugar aonde provavelmente não gostaria de ter de ir. Ele é Thomas, viciado em drogas prestes a se internar em um centro católico de reabilitação na zona rural.
O local é pacífico, os internos são gentis, mas a rotina tem regras. Thomas demora, mas consegue se adaptar. Um dia, salva-se por milagre de um acidente em uma montanha; tem ali a epifania de que deve se tornar um padre.
O espectador verá, no fim, que “A Prece” não é exatamente uma obra sobre a fé cristã enquanto salvação. É, antes de mais nada, um filme sobre busca, uma procura pessoal por uma motivação ou um norte que leve alguém a se encontrar no mundo.
No entanto, em grande parte do longa, a impressão que se tem é que o cineasta Cédric Kahn defende que a crença religiosa é a única redenção em casos de pessoas que perderam o controle sobre si. O filme é quase uma peça de propaganda católica, ainda que involuntária.
O problema está no procedimento: Kahn pretendia um olhar neutro para compreender melhor como os métodos e as interações pessoais em um internato religioso incidem sobre a mente dos pacientes, a ponto de não só curá-los do vício mas também de gerar neles certa dependência emocional. Afi- nal, alguns adictos já estão há anos longe das drogas, mas se sentem incapazes de deixar o local e enfrentar o mundo novamente.
Mas nessa opção respeitosa por reencenar ritos católicos e testemunhos de internos e observá-los de forma quase documental, de repente a neutralidade do olhar cede espaço a um encantamento que o próprio cineasta talvez não esperasse.
É até compreensível a inclusão de depoimentos de ex-viciados salvos pela fé: por menos novidades que tragam, são um material humano tocante. Mas que tipo de fascínio o diretor tanto vê nas tediosas cantorias de louvação cristã dos internos, a ponto de mostrá-las tão longamente? Kahn deve ter encontrado alguma beleza recôndita naquilo que, para um não convertido, é de uma chatice singular. Ao que parece, deixou-se doutrinar pelo objeto de sua investigação.
Mas ao menos sua câmera também reserva um olhar fascinado ao protagonista, Anthony Bajon. O rapaz exala fúria primal nos instantes de crise, mas é cativantemente terno quando se apaixona. Sua atuação, sim, merece ser louvada com fervor.