Folha de S.Paulo

Estudos reescrevem, com análise de DNA, a saga dos primeiros habitantes do Brasil

Ocupação teve idas e vindas pelo continente e desapareci­mento do grupo ao qual pertencia Luzia

- Reinaldo José Lopes

são carlos Dois estudos monumentai­s, ambos com participaç­ão de cientistas brasileiro­s, reescrevem a história dos primeiros habitantes das Américas com a ajuda do DNA.

Os novos dados revelam uma saga complicada, que inclui idas e vindas entre as diferentes regiões do continente, o desapareci­mento do grupo ao qual pertencia a célebre Luzia, brasileira de 11,5 mil anos de idade, e um possível parentesco de alguns indígenas do passado e do presente com povos da Oceania.

Além disso, em vista dos novos dados de DNA, os pesquisado­res resolveram dar literalmen­te uma nova cara ao povo de Lagoa Santa, a exemplo das icônicas feições de Luzia.

Com base no crânio do chamado sepultamen­to 26 de Lapa do Santo (MG), a antropólog­a forense britânica Caroline Wilkinson, que já tinha reconstruí­do o rosto do rei Ricardo 3º (1452-1485), criou um novo busto para representa­r os brasileiro­s de 10 mil anos atrás. A figura ainda não tem apelido oficial.

Uma das pesquisas está na edição mais recente da revista científica Cell, enquanto a outra sai no periódico especializ­ado Science. Entre os marcos dos estudos estão as primeiras análises do genoma completo de vários seres humanos pré-históricos do Brasil.

A maioria deles viveu na região de Lagoa Santa (MG), perto de Belo Horizonte, sendo, portanto, membros da população à qual pertencia Luzia, com idades entre 10,4 mil e 9.600 anos. Os pesquisado­res também obtiveram o DNA de pessoas sepultadas nos sítios arqueológi­cos de Laranjal e Moraes, em São Paulo (com 6.700 e 5.800 anos de idade, respectiva­mente), e do sítio Jabuticabe­ira2, em Santa Catarina (cerca de 2.000 anos).

“Esse tipo de estudo de grande escala com DNA humano antigo já tinha sido feito em praticamen­te todas as regiões do mundo. Faltava o continente americano, em especial a América do Sul”, diz André Strauss, do Museu de Arqueologi­a e Etnologia da USP.

St raus sé oúnicopesq­u isadora assinaram bos os estudos, que foram liderados por duas das instituiçõ­es que hoje disputam a supremacia nesse ramo de pesquisa: o Instituto Max Planck, na Alemanha, e o Museu de História Natural da Dinamarca, em Copenhague.

Entre os coautores brasileiro­s, também há especialis­tas do Museu Nacional da UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro) e da Universida­de Federal do Rio Grande do Sul, entre outras instituiçõ­es.

Os estudos “soletraram” o DNA de 64 esqueletos antigos das Américas, comparando-os com os poucos que haviam sido analisados em trabalhos anteriores e com o genoma de indígenas e outros grupos humanos do presente.

De modo geral, as conclusões de ambos os grupos de cientistas batem. A primeira, já bastante fundamenta­da graças a pesquisas arqueológi­cas, é ada origem comum de todos os indígenas atuais. Eles descendem de uma população ancestral asiática que se fixou, por volta de 20 mil anos atrás, na parte leste da chamada Beríngia — a língua de terra que unia a Sibéria ao Alasca no fim da Era do Gelo.

Tudo indica, no entanto, que se tratava de uma população diversific­ada do ponto de vista genético, que passou por uma série de divisões e expansões populacion­ais, num ritmo relativame­nte rápido, ao longo dos milênios seguintes.

É nesse ponto que as coisas ficam complicada­s, e os estudos divergem entre si.

Vários dos esqueletos muito antigos são caracteriz­ados pela chamada morfologia craniana paleoameri­cana. Os crânios dessa época têm formato mais próximo do visto hoje entre aborígines australian­os, nativos de Papua-Nova Guiné e Melanésia e africanos, a chamada morfologia australo melanésia.

Ép oris soque asre construçõe­s do rosto de Luzia amostram com feições“negras ”. A maioria dos indígenas atuais, entretanto, têm crânios que lembram mais o de povos do Extremo Oriente.

Um estudo anterior tinha identifica­do, em etnias indígenas atuais, como os suruís, da Amazônia, um modesto componente genético associado às populações australian­as e melanésias. Ficou no ar, portanto, a possibilid­ade de achar indícios ainda mais fortes dessa contribuiç­ão no DNA do povo de Lagoa Santa.

No estudo publicado na Cell, isso não aconteceu. Os esqueletos obtidos no sítio arqueológi­co da Lapa do Santo, bem como os demais exemplares estudados, pertencem a linhagens muito antigas e peculiares, mas que estão incluídas dentro do grande grupo dos ameríndios, ou indígenas.

Por outro lado, a pesquisa da Science, liderada pelo dinamarquê­s Eske Willerslev, identifico­u esse “sinal genético australasi­ano” no DNA um esqueleto de Lagoa Santa que está guardado no museu de Copenhague. No entanto, outros paleoameri­canos com idade similar não possuem esse componente em seu DNA.

Por que esse componente só teria ficado preservado em um indivíduo de Lagoa Santa, sem outro exemplo no meio do caminho? De qualquer modo, ele não teria relação com a morfologia craniana, já que outros crânios com a mesma aparência são geneticame­nte ameríndios”, diz Strauss.

A versão mais sofisticad­a da hipótese da contribuiç­ão de grupos ligados aos australome­lanésios para o povoamento original das Américas foi formulada pelo bioantropó­logo Walter Neves, professor aposentado da USP e mentor de Strauss. O paradoxo, diz o autor do novo estudo, é que Neves estava correto, mas numa escala diferente.

Isso porque, de fato, os dados genômicos mostram que os paleoameri­canos de Lagoa Santa e outros lugares foram substituíd­os por outras linhagens de ameríndios, que se espalharam mais tarde pelo continente. Alguns desses grupos relativame­nte mais recentes parecem ter vindo da América do Norte e da América Central, incluindo uma “invasão” da América Central para os Andes há 4.200 anos.

“O mistério aqui é que a gente não tem correlatos arqueológi­cos claros dessas mudanças populacion­ais mais antigas. Ou seja, não dá para dizer que as populações mudaram por causa da chegada da agricultur­a, ou por outro fator, ao menos por enquanto”, explica o arqueólogo.

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Caroline Wilkinson
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Caroline Wilkinson Com base em novos dados de DNA, cientistas criaram um novo busto para representa­r os brasileiro­s de 10 mil anos atrás, a exemplo das famosas feições de Luzia
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André Strauss Pesquisado­r escava esqueleto no sítio arqueológi­co da Lapa do Santo (MG)
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