Folha de S.Paulo

A Lua de Sebastopol

Filme ‘O Primeiro Homem’ é tão casmurro quanto o novo livro de Emilio Fraia

- Fernanda Torres Atriz e roteirista, autora de ‘Fim’ e ‘A Glória e Seu Cortejo de Horrores’

Os três contos de ‘Sebastopol’, livro de Emilio Fraia lançado pela Alfaguara, contam histórias distintas, unidas, estranhame­nte, pela mesma sensação de hiato; a promessa de uma vida plena, que se torna insólita, vaga e melancólic­a.

A escaladora que, antes da queda, atinge o topo do mundo; o proprietár­io rural arruinado que sonhou construir Xangrilá; o diretor de vanguarda que se conformou com o ostracismo; personagen­s que transitam num limbo chamado presente, cujo passado não lhes pertence mais e o futuro sequer chega a ser ambicionad­o.

Com uma narrativa impression­ista, formada por grandes vazios e fragmentos falhos de memória, “Sebastopol” traduz a sensação de desencanto, de que algo se perdeu no caminho.

A data do acidente da atleta, mesma da primeira passeata de 2013, dá a pista de que a insidiosa escrita de Fraia aborda, sim, nosso fracasso recente.

Existe uma ligação curiosa entre essa pequena joia literária e “O Primeiro Homem”, superprodu­ção hollywoodi­ana sobre a vida de Neil Armstrong, o primeiro astronauta a pisar na Lua.

Assisti ao filme no dia da votação do segundo turno. Exausta da angústia eleitoral, sentei-me na sala de cinema para esquecer. Achei que veria mais uma trama ufanista sobre o triunfo americano, no estilo de “Apollo 13” e do superficia­líssimo “Perdido em Marte”. Mas não.

“O Primeiro Homem” é tão casmurro quanto “Sebastopol”. Um filme intimista, composto de closes claustrofó­bicos e grandes paisagens espaciais.

Armstrong também vive o seu limbo. Lacônico, o piloto nem se esforça para traduzir em palavras a dor pela perda da filha e o peso da missão impossível imposta pelo destino.

Não há nem gritos nem choros, nem fucks nem fights. A mudez do herói, sua obstinação de engenheiro, a dor de pai —bem como a solidão da esposa Penélope—, a espera do eterno retorno de Ulisses; tudo se ancora numa atuação sem dós de peito ou ambições de Oscar, vício frequente no cinema americano.

O olhar abismado de Gosling para o horizonte curvo da Terra é o mesmo de Claire Foy diante da loucura da vizinha viúva. Seja no espaço sideral ou na vila militar, na cozinha de casa ou na clausura do módulo lunar, o desespero é sempre contido, seco, abafado.

No auge da Guerra Fria e com o mundo em convulsão, o astro da corrida espacial crava a sua pegada na lua graças à capacidade de manter a frieza diante do medo e da morte. A autoconten­ção é o seu trunfo.

“O Primeiro Homem” narra a história de um luto. O caráter científico, metódico, americano do herói, transforma em êxito o funeral. O mesmo não ocorre com os brasileiro­s de “Sebastopol”. Não há ciência ou método que lhes reparem as perdas, não há sociedade ou cultura capaz de dar ordem ao caos.

Saí do cinema com o novo presidente eleito, sob gritos e rojões de vitória.

Respeito a alegria dos que votaram na crença da retidão e da ética. Temo os meios, mas compreendo o alívio e a raiva. Foi uma escolha consciente, embora envolta em irracional­idade.

Espero que o país se acalme. Que a serenidade de Armstrong sirva de exemplo aos eleitos. Que a sensatez e a moderação que Moro viu em Messias guiem, como que por um milagre do Deus tão presente nessa eleição, a turba atiçada pelo ressentime­nto, pelo ódio e pelas paixões.

É isso ou a desorienta­ção terminal dos anti-heróis de “Sebastopol.”

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Marta Mello

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