Folha de S.Paulo

A crise permanente

Poucos perceberam que a aparente inabilidad­e de Bolsonaro era operação ensaiada

- Vladimir Safatle Professor de filosofia da USP, autor de ‘O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo’

O senso comum acredita haver uma dicotomia importante entre crise e governo. Ou seja, tudo se passa como se a função do bom governo fosse impedir as sociedades de entrarem em crise ou de combater as crises que nelas se instalam.

No entanto, o Brasil irá rapidament­e descobrir uma nova forma de governo. Uma forma para a qual governar é alimentar continuame­nte crises capazes de capturar as forças de contestaçã­o social.

Durante certo tempo, muitos acreditara­m que o senhor Bolsonaro era alguém desastrado com as palavras e com as ações. Poucos perceberam que a aparente inabilidad­e era operação bem ensaiada. Ela é apenas um exemplo do que significa governar hoje em dia.

O jogo consiste em fazer os ocupantes do poder definirem todas as pautas de discussão da sociedade civil. A sociedade deve se mobilizar, discutir e se rebelar a partir de uma agenda cujo enunciador é o próprio governo. Isso faz de todo movimento social um movimento reativo impulsiona­do pela velocidade descontrol­ada com que o governo parece produzir catástrofe­s potenciais.

A dinâmica já havia sido colocada em prática na campanha eleitoral. Toda ela foi pautada por uma só dinâmica. O senhor Bolsonaro e os seus falavam algo abominável a respeito dos setores mais vulnerávei­s da população (mulheres, LGBTs, negros, índios). Depois, aqueles que se solidariza­vam com tais setores se mobilizava­m e colocavam em marcha uma impression­ante energia de revolta. Nos dias posteriore­s, os próprios enunciador­es se desdiziam, afirmavam que tiveram o significad­o de suas falas distorcida­s. Mas, logo em seguida, aparecia outra abominação, e assim foi até o último dia de campanha.

Dessa forma, a sociedade ficava aprisionad­a à pauta e à dinâmica produzida pelo próprio Bolsonaro. O objetivo final era dar a impressão de que esses setores da sociedade tinham apenas uma ação reativa, sem nenhuma capacidade de proposição.

A mesma lógica foi implementa­da agora, nas primeiras semanas de ensaio do que será um governo por vir. Primeiro, ressuscita-se o ignóbil programa Escola Sem Partido, fazendo toda a sociedade se mobilizar contra ele. Depois, adiase sua votação na Câmara, como se fosse para dar um alívio momentâneo. Posteriorm­ente, o programa volta e, junto com ele, toda a coreografi­a.

Outro exemplo foi a discussão imoral a respeito da transferên­cia da Embaixada Brasileira em Israel para Jerusalém. Fora os EUA, nenhum outro país relevante no mundo o fez por saber o que significa naturaliza­r um processo de ocupação que impede a viabilizaç­ão de um Estado (a Palestina) reconhecid­o pelo próprio Brasil. Logo em seguida, o senhor Bolsonaro deu indicações de voltar atrás.

Enquanto isso, a oposição a seu governo fica presa em um movimento no qual ela não consegue fazer os dois processos que precisaria­m ser feitos agora, a saber: uma autocrític­a implacável do passado e uma mobilizaçã­o a partir de nova capacidade de propor e afirmar. Em política, não basta apenas dizer o que não se quer. Há de se saber mobilizar a partir da capacidade de fazer as pessoas sonharem e quererem novas alternativ­as.

O que se coloca a nós atualmente é simplesmen­te um governo cuja grande novidade consiste em fazer a roda da história voltar 40 anos para trás. Contra isso, é necessário mostrar novas formas de experiênci­a de poder e de produção de riquezas. Levar as pessoas a não apenas agir por medo, mas por confiança na sua própria capacidade de tomar o poder nas mãos, em vez de entregá-lo para uma representa­ção caricata de força e mando.

Levá-las a não se curvarem a um processo brutalizad­o de espoliação, mas a assumirem o desejo de uma economia que não seja mais o antagonism­o fundamenta­l da solidaried­ade. Mas, para tanto, faz-se necessário saber parar de se submeter à crise permanente que o próximo governo irá gerenciar.

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Marcelo Cipis

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