Folha de S.Paulo

Sobreviver ao estilhaço

Noite dos Cristais, marco antissemit­a, é relembrada por fugitivo do nazismo

- Depoimento a Carolina Vila-Nova

DEPOIMENTO GERALDO LEWINSKI, 90

O judeu alemão naturaliza­do brasileiro Geraldo Lewinski tinha 10 anos quando viveu a Kristallna­cht, a Noite dos Cristais, que marcou o início da perseguiçã­o violenta dos nazistas aos judeus.

Para sobreviver, a família mimetizou-se à multidão raivosa na madrugada de 9 para 10 de novembro de 1938, quando Berlim foi tomada por depredação e pichações antissemit­as. Pressentin­do o massacre, os Lewinski fugiram para o Brasil em 1939, escapando do Holocausto que mataria 6 milhões de judeus.

Morávamos numa das piores regiões da Alemanha [em termos de antissemit­ismo], a Prússia Oriental [hoje dividida entre Polônia, Lituânia e Rússia]. Meu pai, Martin, tinha uma loja de artigos de couro. Havia sinagogas e serviços judaicos, mas nos perseguiam.

Na escola que frequentei na cidade de Allenstein, os alunos judeus eram perseguido­s pelos professore­s e colegas. Para você ter uma ideia do que era a mentalidad­e alemã, um dia, durante a aula, um dos alunos furou o olho de outro coma caneta-tinteiro. Qual foi areação do professor ?“Poxa, perdemos um soldado alemão ”.

Em Allenstein, havia uma floresta muito legal, pertinho de casa, onde todo domingo íamos com meus pais catar cogumelos e framboesas. Um dia, caiu um apancada de chuva e um carro atolo una lama. Desceu um cara uniformiza­do enos pediu ajuda. O camarada fardado se apresentou: “Eu sou o general Von Lewinski”. Meu pai falou: “Meu nome também é Lewinski, que coincidênc­ia!”. Von Lewinski era general de carreira, não nazista, e falou: “Vou dar um conselho, saiam da Alemanha imediatame­nte”.

Meu pai até queria, mas não achávamos aonde ir. A propaganda nazista era tão forte em todo o mundo que ninguém queria saber de judeus.

Depois disso, mudamo-nos para Ber lim,em1938.M asantes me upai te vede deixara loja praticamen­te de graça para os alemães. Vendeu por 50 marcos [o equivalent­e a R$ 1.350 em valores de hoje].

Naquela época, todas as lojas já tinham que exibir uma placa que as identifica­sse como pertencent­es a judeus para que os arianos não comprassem lá. Só os alemães não assimilado­s ao nazismo continuava­m comprando.

Em Ber lim,a vida judaica continuava mais ou menos estável. Havia uma escola judaica, coma sinagoga, que agentefre quentava. Era muito le- gal, pela primeira vez agente participav­a de aulas comtranqui­l idade. Ficava bem no centro,pró xi maàAl ex anderplatz.

No dia 9 de novembro de 1938, meu irmão e eu fomos à escola. Quando chegamos lá, estava uma gritaria, um incêndio, os rolos da Torá sendo jogados na rua, queimados, destruídos, pisoteados. Aquilo foi uma cena impression­ante, que não dá para sair da memória. Corremos de volta para casa para avisar meus pais. Nós morávamos no segundo andar de um prédio bem em frente à Gestapo [a polícia secreta de Hitler]. Olhamos pela janela e vimos caminhões sendo carregados de judeus para serem levados para os campos de concentraç­ão.

Ficamos rezando “Ana H’Hoshia na”, Deus, por favor, nos salve. Nisso, os nazistas começaram a entrar no prédio. Como havia escadas nos fundos, pegamos umas coisas e consegui mossa irenos refugiar num parque perto dali.

À noite, começou uma ba- rulheira tremenda, e, como na Alexanderp­latz havia muitas lojas judaicas, percebemos que elas estavam sendo depredadas. As vitrines eram quebradas, e as pessoas gritavam: “judeus porcos, judeus porcos”. Os nazistas estavam procurando judeus por todos os lados, inclusive no parque onde estávamos escondidos.

Aí, como não tínhamos aparência de judeus e meu irmão era aloirado, meu pai teve a seguinte ideia: “Vamos nos misturar com essa horda, aí não vai dar para perceber”.

Então vimos tudo isso de perto. Porque eu estava junto com a horda. Claro que a gente não gritava, só abria a boca. Mas essa foi a nossa salvação. Vimos as vitrines sendo destruídas, gente atirando pedras. E os estilhaços no chão.

Quando chegou de manhã, voltamos a nos esconder no parque. Passaram horas até retornarmo­s ao apartament­o, que estava intacto, e meu pai conseguir um abrigo num galpão, onde havia mais uns 20 ou 30 judeus escondidos.

Um amigo do meu pai conseguiu um visto para a República Dominicana. Ninguém conhecia, mas era melhor do que ficar na Alemanha.

Depois, conseguimo­s um visto para o Brasil com o embaixador brasileiro na Antuérpia, na Bélgica.

Fizemos as malas sob supervisão nazista. Não podíamos levar nada, nem joias, nem objetos, o máximo era 50 marcos. Em 21 de abril de 1939, desembarca­mos em Santos.

Desde criança, estávamos sempre preparados para sermos perseguido­s. Não era exatamente uma novidade. A gente já estava, entre aspas, acostumado a ser perseguido. Como todos os judeus na Alemanha. Aliás, muitos judeus que lutaram na Primeira Guerra receberam depois da guerra, em 1918, uma medalha de honra. E muitos acreditara­m naquela medalha [como garantia de não perseguiçã­o].

Não adiantou nada. O antissemit­ismo continua.

A gente não esquece. Tudo o que aconteceu nos ajuda a ir em frente, a progredir. Não consigo contar tudo porque fico emocionado. Até hoje, quando eu vou a uma sinagoga, eu penso: Que bacana, vi minha sinagoga sendo destruída e aqui estou eu.

Ou quando vejo judeus andando com o quipá, indo para a sinagoga no sábado ou na sexta-feira, eu fico emocionado. Porque nosso povo, apesar de tudo, ainda vive. Em hebraico dizemos “Am Israel Chai”: o povo de Israel vive.

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Karime Xavier/Folhapress O alemão Geraldo Lewinski, 90
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1 e 2 Lojas pertencent­es a judeus vandalizad­as por nazistas na Noite dos Cristais, de 9 para 10 de novembro de 1938 3 Em São Paulo, Geraldo Lewinski, 90, relembra quando sua família se juntou à turba para sobreviver a agressões; em 1939, eles fugiram para o Brasil
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