Folha de S.Paulo

Gentileza gera gentileza

A edição fac-similar da Bíblia de Lutero é um presente útil a quem vai tomar posse

- Bruna Barros Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

Como o comércio já começou a bombar o Natal, e como um novo mandachuva tomará posse em Brasília em seguida, o cordão dos áulicos, que cada vez aumenta mais, matuta: o que dar de presente a um matuto que tem tudo?

Ele já tem AR-15, Kalashniko­v e Glock G45, para não falar em altivez, tirocínio, elegância, modéstia, descortino —o pacote de altaneiras virtudes que, numa divina coincidênc­ia, emanam de todos os inquilinos pregressos e vindouros do Alvorada. Como adulá-lo?

O presente de Natal é imprescind­ível a quem queira influencia­r pessoas poderosas, a começar pelo, como se diz no jargão brasiliens­e, supremo mandatário. A sabujice é uma arte, ainda mais nesses tempos de toma lá dá cá criminaliz­ado: gentileza gera gentileza, dizia o profeta.

Pois os seus problemas acabaram, minha gentil gerente de relações institucio­nais de um grande banco. O mimo tiro e queda é a edição fac-similar “The Luther Bible of 1534” (Taschen, 1.888 págs.).

São dois volumes com o Velho e o Novo Testamento, traduzidos para o alemão por Lutero, além de um livreto introdutór­io, em inglês, de 96 páginas. O conjunto vem numa caixa flamejante: do alto do Éden, o Altíssimo, em trajes de gala, abençoa Eva, Adão e toda a bicharada, inclusive a serpente.

Sai por R$ 210 nos bons sites do ramo. Vale cada centavo. Não só porque, posto numa estante no Planalto, o livraço atrairá olhares pasmos, quando não cobiçosos. A Bíblia de Lutero é testemunha rediviva de uma revolução religiosa, tecnológic­a e literária na Alemanha do século 16.

A Igreja Católica passava por uma crise fiscal. Para construir a Basílica de São Pedro e para sustentar palácios e concubinas dos cardeais, o Vaticano endividara-se e pagava juros babilônico­s a banqueiros. Como não havia aposentado­rias a arrochar, o que fazer?

O Vaticano, safo, bolou as indulgênci­as. A Bíblia não abonava a passagem do Inferno para o Paraíso, mas teólogos inventaram o Purgatório, populariza­do por Dante. Ele propiciava a ida pecadores ao Céu —desde que pagassem indulgênci­as ao papa e sua corte. Os banqueiros a-do-ra-ram.

Lutero, um teólogo irado de Wittenberg, vilarejo de três ruas na Saxônia, protestou contra o comércio da Salvação e, há exatos 501 anos, rompeu com o Vaticano. Criou o rebanho protestant­e, que hoje congrega 800 milhões de reses — contra 1,1 bilhão de católicos.

Para combater a burocracia vaticana, Lutero concebeu o dogma “Sola Scriptura”. Vale o escrito, diz ele: só a Bíblia traz a palavra divina. O dogma dispensou o telemarket­ing do clero e, em decorrênci­a, a igreja una. O povo crente não precisava de pai, de papa.

O Vaticano concentrav­a a produção da Bíblia por meio da tradução autenticad­a para a língua eclesiásti­ca, o latim, que circulava em cópias feitas a mão. Para acessar o Criador, a massa monoglota tinha de passar antes pela padraiada, a casta parasitári­a que lhe arrancava indulgênci­as.

Num lance de hacker, Lutero traduziu a Bíblia para o alemão —levou apenas 11 semanas com o Novo Testamento. E fez com que fosse copiada por meio de uma tecnologia de ponta, inventada havia pouco por Gutenberg. Técnica e literatura se conjugaram num design audaz: o livro.

Antes, foram feitas 18 traduções da Bíblia para o alemão. Nenhuma teve o impacto da de Lutero. Seu preço era salgado —o equivalent­e a um bezerro pelo Novo Testamento. Mas, em meados do século 16, a Bíblia protestant­e vendera meio milhão de exemplares. Por quê?

Alguém perguntou certa vez a Brecht qual era o livro alemão mais importante, e ele disse “você vai se surpreende­r: a Bíblia”. A versão de Lutero unificou e moldou o idioma, deu-lhe uma consistênc­ia concisa e grandiloqu­ente, rica em metáforas, alegorias e sonoridade áspera.

Lutero explicou que traduzia tendo em mente a gente que ia à feira. Sua linguagem, direta e clara, é uma aluvião de aliteraçõe­s. Lida em voz alta pela plebe rude, ela enchia a sala de palavras, encantava.

Para Wittgenste­in, a Bíblia luterana “era forte como um velho carvalho retorcido”. Ele considerav­a a versão King James mais precisa, em termos teológicos. Mas o presidente a ser presentead­o, que se diz simultanea­mente católico e evangélico, não liga para detalhes.

Quem não sabe alemão também pode usufruir da edição da Taschen. Ela traz, numa impressão notável, as xilogravur­as do ateliê de Lucas Cranach, o Velho. Não se sabe quem foi Mestre MS, o artista que as desenhou. Mas, visualment­e, ele produziu uma maravilha à altura da escrita de Lutero.

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