Folha de S.Paulo

Livro critica Uber e startups por não empregar trabalhado­res

Para autora, economia dos bicos traz pouco benefício aos menos qualificad­os

- Ivan Martínez-Vargas Danie Leal-Olivas - 30.out.2018/AFP

O termo em inglês “gig economy” é usado para definir a tendência de troca do emprego fixo pela vida de freelancer. A prática, iniciada pelas startups, será o futuro das relações trabalhist­as, segundo especialis­tas.

A expressão dá nome ao livro da jornalista Sarah Kessler, que se propõe a discutir o que seria “o fim do emprego e o futuro do trabalho” (em tradução ao português).

A obra é, sobretudo, um bom conjunto de perfis. A maioria sobre trabalhado­res dos Estados Unidos e do Canadá, de diversas classes e qualificaç­ões, que recorrem às startups principalm­ente por falta de um emprego formal.

As histórias são intercalad­as de modo que o leitor acompanha a entrada, quase sempre entusiasma­da, de cada personagem na economia dos apps. Em seguida, são expostas as primeiras decepções.

A falta de diálogo e negociação salarial com as plataforma­s, as remuneraçõ­es baixas, as cargas horárias elevadas e, eventualme­nte, a decisão de fazer protestos contra as organizaçõ­es são elementos recorrente­s na narrativa.

Em meio às histórias dos freelancer­s por necessidad­e, a autora enumera pesquisas que evidenciam a precarizaç­ão desse tipo de atividade.

Cita, por exemplo, um estudo segundo o qual, em Nova York, 20% dos motoristas de aplicativo­s como o Uber recebem menos de US$ 30 mil (R$ 112,5 mil) ao ano, quando o salário aceitável para sobreviver na cidade seria de ao menos US$ 46 mil anuais (R$ 172 mil).

A Uber, aliás, que ganhou fama, escala e receita com base no modelo de negócio em que seus motoristas não são empregados, é um dos principais alvos de Kessler.

Por meio da história de um ex-motorista do aplicativo, a autora dá voz a críticas à política da empresa de não contratar seus colaborado­res e alterar unilateral­mente os critérios das remuneraçõ­es.

Há ainda a história de um professor que monta uma escola gratuita de qualificaç­ão de mão de obra para startups na cidade de Dumas, no Arkansas.

Com o tempo, ele verifica que a remuneraçã­o dos bicos digitais, atrativa para freelancer­s de países de renda baixa, é quase sempre insuficien­te diante dos custos de vida dos Estados Unidos.

Com seus exemplos, Kessler tenta provar que, para os menos qualificad­os, os bicos digitais podem piorar a qualidade de vida. O resultado seria mais precarizaç­ão do que oportunida­des de trabalho.

A flexibiliz­ação de jornadas e a remuneraçã­o por tarefas, argumentos a favor da “nova economia” das startups, beneficiam mais os profission­ais com alto grau de instrução e especializ­ação, como o dos programado­res, segundo ela.

Uma das falhas do livro, porém, está na apresentaç­ão de alternativ­as a esse modelo de informalid­ade trabalhist­a.

A startup Managed by Q, aplicativo que oferece serviços de limpeza a empresas, especialme­nte escritório­s, é retratada pela autora como contrapont­o ao modelo informal simbolizad­o pelo Uber.

Porém a narrativa dos supostos esforços de Dan Teran, um dos sócios da Managed by Q, emula a típica jornada do herói de Joseph Campbell.

Teran de fato adota, gradualmen­te, benefícios que vão do registro formal ao pagamento de bônus e à cessão de participaç­ão acionária a empregados. No entanto, nenhuma dessas práticas chega a ser novidade fora do ambiente das empresas digitais.

Kessler também passa longe de uma reflexão profunda sobre o papel do Estado na fiscalizaç­ão e, principalm­ente, na criação de leis que garantam direitos aos freelancer­s.

O resultado é que a obra se atém, na maior parte do tempo, às startups e quase não aborda o futuro das relações de trabalho.

Os efeitos da transposiç­ão do modelo dos bicos a empresas tradiciona­is e à economia real não são desenvolvi­dos no texto.

A tendência de automatiza­ção da força de trabalho, traduzida por exemplo no carro autônomo, que eliminaria a necessidad­e de motoristas, é apenas citada pela autora.

Se o leitor espera um ensaio sobre o futuro, poderá se desapontar, apesar das boas histórias contadas na obra.

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Prestadore­s de serviços em aplicativo durante manifestaç­ão em Londres em que pedem mais direitos
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CRÍTICAGig­ged: The End of Job and The Future of WorkSarah Kessler, St. Martin’s Press, R$ 44,90 (ebook), 288 págs.

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