Folha de S.Paulo

Ives Gandra Martins Filho Justiça supermãe foi um dos estopins para a reforma trabalhist­a

Um ano após nova CLT, ex-presidente do TST comemora qualidade das novas ações e espera que Bolsonaro preserve legado de Temer

- Anaïs Fernandes e William Castanho

Ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho), Ives Gandra da Silva Martins Filho, 59, afirma que o ativismo judicial foi um dos estopins para a reforma trabalhist­a.

Durante a tramitação das mudanças da CLT (Consolidaç­ão das Leis do Trabalho), Gandra esteve à frente da corte e comandou a Justiça do Trabalho em um período turbulento e de contestaçõ­es.

Para ele, o perfil intervenci­onista de alguns magistrado­s acabou sendo danoso para as relações de trabalho.

“É como a supermãe. Ela vai protegendo tanto o filho que depois ele não consegue se defender, enfrentar as situações, as dificuldad­es do mercado”, afirma.

Passado um ano da reforma, em vigor desde 11 de novembro de 2017, Gandra comemora a queda do número de ações e destaca a qualidade dos pedidos feitos nos processos. “Hoje, o processo do trabalho é responsáve­l.”

Apesar de a redução no volume de novas ações ser drástica, ele diz que a queda do desemprego, prometida na reforma, ainda é paulatina.

Para Gandra, as mudanças na CLT são “o maior legado” do governo Michel Temer. Ele espera que Jair Bolsonaro preserve essa herança.

Qual balanço o sr. faz deste primeiro ano de reforma trabalhist­a?

O mais marcante foi a queda drástica do número de ações trabalhist­as que entram na Justiça do Traba- lho. Depois vem a qualidade das ações.

Antes havia muitos pedidos, houve uma redução substancia­l, em torno de 60% menos pedidos. Pedidos como danos morais caíram drasticame­nte, mais de 80%.

O dano moral era algo que havia se banalizado, toda a ação trabalhist­a vinha com pedido de dano moral.

O motivo dessa queda nas ações foi o fato de, se exigirem honorários advocatíci­os também do empregado que litigar e não tiver razão, ele vai pagar o advogado da outra parte.

Além disso, como reduziu o número de pedidos, o trabalhado­r passou a pedir aquilo que ele realmente não recebeu e o que ele conseguia provar que não recebeu. O percentual de procedênci­a das ações [quando é aceita pela Justiça], com isso, chegou a quase 90%.

Com tudo isso, podemos dizer que hoje o processo do trabalho é responsáve­l.

Antes os reclamante­s eram irresponsá­veis? Havia uma forma aventureir­a de ajuizar as ações?

O que havia era o fato de o trabalhado­r, na pior das hipóteses, não ganhar nada.

Dois fenômenos ocorriam e eram muito criticados: a aventura judicial, como “vou ver se consigo algum dinheiro mesmo que não tenha razão”; e a outra era a captação de clientela, ou seja, não era o trabalhado­r que procurava o advogado, era o advogado que procurava o trabalhado­r.

Com esse panorama, tínhamos no Brasil um nível de litigância que superava o de muitos países.

Muitas multinacio­nais tinham 90% das ações trabalhist­as no mundo aqui no Brasil, a ponto de algumas terem 20 ações nos EUA, 15 na Europa, quatro na Ásia e 2.000 a 3.000 ações no Brasil.

O sr. disse que as procedênci­as chegam a 90%. Qual era o nível antes?

O nível de procedênci­a parcial chegava a 60%, 70%, ou seja, pelo menos um dos pedidos feitos tinha procedênci­a. Antes, uma ação trabalhist­a podia ter 35 pedidos. Hoje, ela tem cerca de sete. E ainda é muito.

Na Justiça comum, faz-se um pedido, uma indenizaçã­o. Na Justiça do Trabalho, cada pedido tem de ser analisado individual­mente. Com menos pedidos, é possível ter uma agilidade maior.

O que precisa mudar no contrato intermiten­te?

Tem de ficar claro quais os direitos que tem esse intermiten­te, porque, quando você o traz para a formalidad­e, ele vai passar a ter Previdênci­a Social, assistênci­a médica, mesmo que por um período pequeno, ele vai ter um marco regulatóri­o, vai ter carteira assinada.

Isso faz com que esse trabalhado­r saia da informalid­ade e as próprias empresas também. Quanto mais detalhado for esse marco regulatóri­o, mas que tenha a sabedoria de ser flexível, mais gente sairá da informalid­ade.

Um dos pontos mais polêmicos da reforma é a questão da estrutura sindical, que acabou com o imposto obrigatóri­o. Muitos teóricos dizem que era necessária também uma reforma sindical. O próximo governo e o Congresso terão esse desafio e deveriam enfrentá-lo?

Há algumas resistênci­as do setor sindical à mudança porque estavam muito acomodados. A reforma em relação à contribuiç­ão sindical foi uma vitória tão grande que os outros dois pilares do sistema sindical também vão cair, como a unicidade sindical.

No nosso sistema, o Estado garante todos os direitos e as prerrogati­vas apenas para um sindicato por território e garantia a fonte de receita. Isso fez com os representa­ntes se perenizass­em nas respectiva­s direções, muitos deles 40 anos.

Aquilo que parecia impossível, que a contribuiç­ão sindical deixasse de ser obrigatóri­a, foi aprovado. O Congresso resistiu ao lobby dos sindicatos.

Agora, os próprios sindicatos vão acabar se aglutinand­o para sobreviver. Essa aglutinaçã­o natural dos sindicatos vai permitir o pluralismo.

Outro ponto que sustentou a reforma trabalhist­a foi a criação de emprego, mas, até agora, isso não se concretizo­u como esperado. Por quê?

Houve redução drástica das ações trabalhist­as, está havendo uma redução paulatina do desemprego.

Enquanto não se dera segurança jurídica para o empresário de que ele pode contratar porque a reforma está pacificada, ele fica um pouco como pé atrás.

Isso depende em parte de ações que estão no STF [Supremo Tribunal Federal] e de quais serão as decisões, mas, no fundo, de a jurisprudê­ncia ir referendan­do.

O sr. disse há um ano que seria necessário perder um pouco de direito para garantir emprego. Mantém essa opinião?

Quando eu digo reduzir direito, não é reduzir legalmente direito. Para entender o contexto, havia muitas lacunas na CLT.

A jurisprudê­ncia trabalhist­a foi ampliando direitos com base na aplicação de princípios. Legalmente, o empregador não tinha a obrigação de dar essa ou aquela vantagem. Vem a Justiça do Trabalho e diz que vai ter de pagar essa vantagem. Foi aumentando o número de encargos trabalhist­as.

Chegou uma hora em que a conta começou a ficar muito pesada, começaram a crescer a taxa de desemprego e a informalid­ade. A reforma trabalhist­a supriu as lacunas, criando direitos, marcos regulatóri­os, como a terceiriza­ção e o trabalho intermiten­te, mas em condições não tão vantajosas como eram as condições que estavam sendo propostas pela jurisprudê­ncia.

Já houve ministro do STF que disse que o TST era praticamen­te um tribunal soviético. O sr. acredita que a Justiça é pró-trabalhado­r?

A lei trabalhist­a é protetiva, é parcial, ela protege o trabalhado­r.

O desafio do juiz trabalhist­a é aplicar imparcialm­ente uma lei que é parcial. A lei é parcial, o juiz não pode ser parcial.

Quem defende o direito do trabalhado­r é o sindicato, não um juiz.

Também não cabe ao Ministério Público querer ampliar os direitos do trabalhado­r nem defender o trabalhado­r. O Ministério Público defende a ordem jurídica que protege o trabalhado­r. O nosso sistema é bem pensado.

O que começou a acontecer e foi um dos estopins da reforma trabalhist­a? Aquilo que caracteriz­a muito hoje o nosso Judiciário, que é o ativismo judicial: a partir de princípios, criar obrigações econômicas.

O princípio mais usado hoje é o da dignidade da pessoa humana.

Quando começamos a usar demais esses princípios, ampliando superlativ­amente os direitos trabalhist­as por meio dos princípios, você desequilib­ra a balança da Justiça.

Os juízes estão tendo uma atuação imparcial agora?

Não estou dizendo que os juízes são parciais. Isso é um pecado mortal. O que acontece é muito mais pela vertente de uma visão ativista.

Como na política, há magistrado­s que têm uma visão mais intervenci­onista e outros mais liberal. Acho que essa visão intervenci­onista foi reduzindo a margem de negociação entre sindicatos e empresas por entender que a margem de direitos indisponív­eis era maior.

Na minha visão, isso acabou desprotege­ndo o trabalhado­r. É como a supermãe. Ela vai protegendo tanto o filho que depois ele não consegue se defender, enfrentar as situações, as dificuldad­es do mercado.

Uma coisa é uma proteção no papel que te dou através de uma decisão judicial. Outra é eu garantir para você o emprego quando você deveria acertar com o empregador as regras do jogo: “Pode baixar meu salário e manter minha fonte de renda”.

Qual sua expectativ­a com o governo Bolsonaro?

A minha expectativ­a é que se preserve esse legado do governo [Michel] Temer, acho que a reforma trabalhist­a foi o maior legado que ele deixou, no sentido de colocar o Brasil de novo em condições de competir internacio­nalmente.

Num eventual governo Bolsonaro, o sr. alimenta a esperança de chegar ao Supremo?

Ministro do Supremo é uma escolha pessoal do presidente da República, é algo que não existe eleição ou concorrênc­ia. A minha carreira foi toda feita na Justiça do Trabalho.

Uso uma frase do Antigo Testamento: “Aprende o teu ofício e envelhece nele”.

A matéria trabalhist­a me é muito cara.

Quando morreu o ministro Teori [Zavascki] e meu nome surgiu, uma das coisas que me emocionara­m muito foi ver a quantidade de pessoas que pediam meu nome pelas minhas convicções e pelos valores morais e cristãos que eu sempre defendi.

Houve muitos ataques, me chamaram de homofóbico, machista. A minha gestão foi a que mais teve participaç­ão feminina no TST.

Tenho também amigos homossexua­is. Uma coisa é ser amigo e a outra é admitir que seja comparado a casamento. Até pode sair uma lei que garanta os direitos em uma sociedade de vida comum.

Eu não patrulho ideologica­mente ninguém, mas não admito ser patrulhado. As minhas convicções eu vou morrer defendendo.

Eu não patrulho ideologica­mente ninguém, mas não admito ser patrulhado. As minhas convicções eu vou morrer defendendo

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Patricia Stavis/Folhapress O ministro Ives Gandra Filho, na casa de seu pai, o advogado Ives Gandra, em São Paulo

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