Folha de S.Paulo

Valores para quê?

O esporte também ensina que ser adversário não representa ser inimigo

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Para surpresa de muitos, mas não de alguns, despontou na prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) da semana passada uma questão relacionad­a ao Movimento Olímpico.

Digo que não foi surpresa para alguns porque existe um grupo não muito grande de educadores, que são mais do que professore­s, que já entendeu que a educação física e o esporte são mais do que conteúdos curricular­es. Eles são temas transversa­is que se comunicam com diferentes disciplina­s como história, geografia, biologia, química, física. É um tema transversa­l, acima de tudo, porque aponta para a possibilid­ade e importânci­a de discutir um elemento tão fundamenta­l nos dias atuais, que são os valores e a ética.

Tema querido da filosofia, a ética está no campo dos valores humanos fundamenta­is para a vida em sociedade. Se parto do princípio de que não há competição esportiva sem adversário, a apropriaçã­o da ética é tão necessária na formação do atleta, e de todos os envolvidos com sua formação e treinament­o, quanto a preparação física, técnica e tática.

Houve quem quisesse reduzir a ética esportiva a um preceito denominado fair play. Fundamenta­do em uma moral muito específica, da Inglaterra do século 19, o fair play foi entendido como “jogo limpo” e declarado universal para atender às demandas da universali­zação do esporte. Vale lembrar que, nos primórdios do esporte, essa era uma prática restrita a um grupo social específico, que mais excluía do que incluía. E tanto as regras da prática das modalidade­s como as de conduta dos atletas foram escritas por esse grupo. Porém, não foi preciso muito tempo para questionar o quanto esses valores representa­vam um grupo específico, na medida em que países de diferentes culturas passaram a jogar sob a mesma regra e ter que se comportar conforme as normas ditadas.

Por isso é bom lembrar que todo valor moral reflete o grupo social em que ele é desenvolvi­do e aplicado.

No mundo do esporte, o respeito, a amizade e a excelência foram denominado­s valores olímpicos. Entretanto é possível afirmar que todos eles são, acima de tudo, valores humanos. Não entendo ser possível qualquer processo educaciona­l sem o exercício e a prática desses valores. Na via de mão dupla aprender-ensinar, a tríade respeito, amizade e excelência forma a base para relações que levam a descoberta­s e construçõe­s que movem o mundo.

Certa vez, depois de trabalhar na capacitaçã­o de um grupo de professore­s da Prefeitura de São Paulo, que participar­iam com seus alunos das olimpíadas estudantis, me vi diante da aplicação desses preceitos. Um dos times era dirigido por um professor que educou seus alunos com base nos valores. Foram para a disputa e, como devia ser, fizeram o seu melhor. Deram um show de respeito e amizade que não caberia no conceito de fair play. Mesmo aplicando tudo o que sabiam, não conseguira­m a tão desejada vitória que os colocaria no lugar mais alto do pódio.

Essa seria mais uma cena de um campeonato se um dos garotos campeões, logo após a premiação, não fosse até o professor derrotado e lhe desse a sua medalha. Surpresa para uns, constataçã­o para outros, ali estava a prova de que esporte e valores caminham juntos.

Se o esporte é um campo onde se experiment­am diferentes relações sociais, ele pode ser também o campo de experiment­ação de condutas valorosas e éticas. Ele também ensina que ser adversário não representa ser inimigo.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil