Folha de S.Paulo

CENTENÁRIO RESGATA LEGADO E TRAUMAS DA 1ª GUERRA

Soldado na Batalha do Somme, entre trincheira­s nomeadas, em 1916, na França; o conflito redesenhou a Europa e impactou economia, tecnologia e dinâmica familiar

- Lucas Neves

Às vésperas do centenário do Armistício que, em 11 de novembro de 1918, pôs fim à Primeira Guerra Mundial, o presidente da França, Emmanuel Macron, causou celeuma ao sugerir a inclusão do marechal Philippe Pétain (1856-1951) na lista de homenagead­os em um tributo aos combatente­s que foram decisivos para a vitória aliada.

Aclamado líder das tropas francesas no primeiro grande conflito do século 20, Pétain cairia em desgraça pouco mais de 20 anos depois, quando, como presidente em exercício, colaborou com a ocupação nazista. Acabaria condenado à morte, pena depois convertida em prisão perpétua.

O episódio ilustra o quanto a Segunda Guerra (1939-45), com sua galeria de imagens, personagen­s e relatos horripilan­tes, não raramente eclipsa a memória do confronto anterior —e isso dos dois lados das antigas trincheira­s.

Quando Macron receber cerca de 60 chefes de Estado, neste domingo (11), no monumento ao Soldado Desconheci­do, sob o Arco do Triunfo, estará buscando realçar as lições específica­s que a morte de ao menos 15 milhões de pessoas (dentre as quais 10 milhões de militares) legou.

Segundo o historiado­r Christophe Prochasson, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), a construção do imaginário francês em torno da Grande Guerra atravessou três fases nos últimos cem anos.

Na primeira, no imediato pós-conflito, os relatos dos combatente­s compuseram um retrato heroico, marcado pelo orgulho patriótico.

Como ressalta o também historiado­r Nicolas Beaupré, da Universida­de Clermont Auvergne, houve em Paris, na festa do 14 de julho de 1919, um grande desfile dos países que haviam engrossado as fileiras da Tríplice Entente (França, Reino Unido e Rússia) no front.

Foi também nessa época que proliferar­am memoriais e monumentos em homenagem aos caídos em combate. O “poilu”, nome informal dado à figura do soldado francês, estava em toda parte, como, do outro lado do canal da Mancha, seu homólogo britânico, o “tommy” —ambos sempre ligados a discursos pacifistas.

A segunda etapa de sedimentaç­ão da memória da Primeira Guerra é aquela em que as lembranças são mais ativamente “parasitada­s” pela então recém-encerrada Segunda Guerra.

“Há uma espécie de ocultação. Além disso, os combatente­s de 1914-18 começam a carregar a pecha de não terem conseguido evitar o horror do conflito seguinte”, diz Prochasson,

Ele situa a década de 1990 como marco inicial da terceira fase. Aqui, a morte dos últimos combatente­s deixa àqueles a quem haviam contado suas histórias a missão de mantê-las no pensamento coletivo. Em paralelo, a pesquisa acadêmica e a produção cultural pautada pelo conflito abandonam o campo de batalha como objeto de estudo ou cenário exclusivo.

A guerra se humaniza, seus ecos na vida de quem não empunhou armas nem dirigiu tanques se fazem ouvir em cartas, diários, romances, histórias em quadrinhos. Sai a estratégia militar, entram a luta íntima, a mulher, a família.

Mais adiante, em 2011, um grande museu só sobre temas ligados à guerra é aberto a uma hora de Paris.

Já na Alemanha, a memória do período foi sempre recalcada, e não só por causa da derrota em si. Os acordos pósguerra, que apontaram o país como único responsáve­l pelo estouro das hostilidad­es, reduziram seus limites e obrigaram-no a pagar indenizaçõ­es vultosas, seriam entendidos como humilhação.

“A aliança do Império Germânico com o Austro-Húngaro havia criado a ilusão de que não havia chance de perderem o confronto”, explica o historiado­r Bernard Hüppauf, que deu aulas na Universida­de de Nova York (NYU).

“O Armistício foi um choque, amplificad­o pela renúncia do imperador Guilherme 2º, dois dias antes.”

Uma minoria difundiu a leitura de que o país havia sido traído, de que era, no fim das contas, o vencedor moral. Encampada pelo Partido Nacional Socialista de Hitler, a argumentaç­ão obtusa deu consistênc­ia ao caldo revanchist­a que desaguaria na Segunda Guerra.

A partir dali, o “apagamento” do conflito precedente seria tamanho que Hüppauf, hoje com 75 anos, conta que nem sequer o estudou na escola.

A guerra só começou mesmo a sair do breu com a aproximaçã­o do centenário de seu começo, em 2014. Aí, sim, cresceu o interesse e aumentaram as publicaçõe­s em torno dela.

“O problema é que o viés ainda é o da culpa”, lamenta Hüppauf. “Essa me parece uma abordagem estéril. Seria mais importante mostrar o impacto social e cultural do confronto na Alemanha, seus efeitos mais amplos na autoestima do povo.”

Também na escala europeia, o legado é extenso. A Grande Guerra redesenha o mapa do continente, dissolve impérios, infla e murcha território­s de alguns países, dá luz a outros, como a Tchecoslov­áquia e a Iugoslávia (cujo desmantela­mento posterior cria um barril de pólvora de alta combustão até hoje).

O Estado assume peso inédito na economia e no enfrentame­nto da penúria social, enquanto a vida política se estrutura e se dinamiza, com o estabeleci­mento de agremiaçõe­s em diferentes latitudes do espectro partidário, aponta Prochasson.

No campo da tecnologia, bélica mas também médica, os avanços se acumulam.

“É uma barbárie que deixa frestas para a civilizaçã­o no momento em que esta se encontra em suspensão”, resume ele. “De um ponto de vista estritamen­te técnico, amoral, ela é uma acelerador­a de progresso.”

O mundo do trabalho também é palco de mudanças rápidas. As mulheres assumem os postos deixados na indústria e na agricultur­a pelos agora soldados. Em casa, assumem a educação dos filhos.

Terminada a guerra, o reencontro de casais se dá sob o signo de um novo equilíbrio de forças, com identidade­s masculina e feminina redefinida­s. Explode o número de divórcios.

“Os homens voltam como símbolo da força e virilidade, mas destruídos física e emocionalm­ente. Choram, não conseguem verbalizar sua experiênci­a. Enquanto isso, as mulheres se tornaram líderes no trabalho e no lar. A ordem íntima foi virada de ponta-cabeça”, conclui Prochasson.

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Coleção Primeira Guerra Mundial
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AP/PA Soldados britânicos em trincheira na França em 1º de julho de 1916, dia mais sangrento da história desse Exército
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