Folha de S.Paulo

Ressentido, mundo atual lembra o que emergiu do conflito

Historiado­r afirma que falta “grau de alarme” à reação conservado­ra, mas crê que a crise é bem menos aguda

- Igor Gielow

A obliteraçã­o da Europa na Primeira Guerra Mundial deu à luz o mundo moderno, e hoje vivemos um ambiente muito semelhante ao vivido naquela infância brutal dos anos 1920 e 1930: ressentido­s e frustrados.

“O que falta é um grau de alarme”, diz o historiado­r cultural Modris Eksteins, 74, sobre o risco da emergência de autoritari­smos análogos ao fascismo no ambiente saturado da pós-verdade. Ele considera, contudo, pequena a chance de que isso ocorra.

Letão-canadense, Eksteins é autor de uma das mais inovadoras leituras da Grande Guerra, como o conflito cujo fim completa cem anos neste domingo (11) era conhecido até sua continuaçã­o anabolizad­a explodir em 1939.

Em “A Sagração da Primavera” (1989, fora de catálogo), ele situa o marco zero do moderno na cultura na estreia em Paris do balé homônimo de Igor Stravinski, em 1913. Um ano depois, uma geração inteira começaria a perecer em trincheira­s em consonânci­a estética com o modernismo.

Apesar da visão algo otimista sobre o que ocorrerá daqui para a frente, ele vê o trem da reação em marcha como nos anos 1920: daí a eleição de líderes como Donald Trump (EUA), Jair Bolsonaro, Viktor Orbán (Hungria) e Rodrigo Duterte (Filipinas).

Nesta troca de emails, ele vê a arte atual como um ente sem vida, dissolvida no kitsch.

Citando o pintor holandês Vincent van Gogh e seu plagiador alemão Otto Wacker, cujo julgamento em 1932 Eksteins esmiuçou em outro livro sobre o pós-1918, “Dança Solar” (2012, não lançado no Brasil), ele diz: “Nosso mundo, com sua cultura de celebridad­es, é uma amálgama dos dois”.

Em “A Sagração da Primavera”, o senhor define a Primeira Guerra Mundial como o berço do mundo moderno. Quanto daquela centelha original pode ser reconhecid­a um século depois?

A verdade, nos dizem, foi substituíd­a hoje pela verdade subjetiva. A crítica cultural Michiko Kakutani, que venceu um prêmio Pulitzer, inclusive fala num livro recente sobre a morte da verdade. Nada disso é novo de fato.

Um golfo sempre existiu entre os eventos e nossa habilidade de articular seu significad­o. Ainda assim, esse golfo se tornou intranspon­ível na primeira metade do século 20, um processo acelerado pelas duas guerras mundiais.

Eventos, especialme­nte morte em massa e destruição da guerra total, afastaram nossa habilidade de representá-los. A linguagem falhou.

Se guerra e tecnologia foram as engrenagen­s da mudança no século passado, tecnologia hoje é o principal motor de uma inovação alucinante, cujas implicaçõe­s são excitantes, mas também assustador­as. As consequênc­ias são potencialm­ente devastador­as.

Hoje, os ocidentais guerreiam à distância e assistem aos Historiado­r pela Universida­de de Toronto, mestre por Heildelber­g, doutor por Oxford; é professor emérito em Toronto. Escreveu “A Sagração da Primavera” (1989), “Caminhando desde a Aurora” (1999) e “Dança Solar” (2012) combates nos seus celulares. A arte como um meio de perceber o mundo parece ter sido sobrepujad­a por um tédio que se correlacio­na com esse tipo de guerra sem heroísmo. Todas as antigas normas foram erodidas. O que é arte? O que é guerra? Não há mais declaraçõe­s formais, quem dirá definições, de nenhum dos dois. Tudo depende da percepção e do desejo do observador. Numa era da selfie, arte é o que eu digo que é. E meu inimigo é simplesmen­te “o outro”.

A experiênci­a das pessoas se sobrepõe à autoridade externa, sobre o “establishm­ent” ou “o pântano”, como Donald Trump insiste em chamá-lo. Como resultado, a imagem passada se fragmentou sucessivam­ente, e a realidade para muitos virou uma extensão narcísica do eu, uma forma de autoindulg­ência.

Como isso se conecta com a PrimeiraGu­erraMundia­l?

A Grande Guerra produziu uma estonteant­e erosão da autoridade tradiciona­l. Como alguém poderia distinguir entre vitória ou derrota após talvez 10 milhões de mortos e 20 milhões de mutilados? Ninguém ganhou.

Palavras e todas as outras formas usuais de expressão perderam sentido, assim como velhos políticos, generais e pregadores. “Palavras escapam, deslizam, perecem, decaem”, escreveu o poeta T. S. Eliot. Fascismo, um fenômeno novo, um “movimento do povo” como Hitler chamava seu partido, foi o produto dessa crise. A guerra havia sido liderada por generais; Hitler foi um cabo.

A Grande Guerra democratiz­ou a dúvida e empoderou o ressentime­nto. “Minha Luta”, como a polêmica egomaníaca de Hitler foi intitulada, se transformo­u na estrela-guia.

Os enormes avanços tecnológic­os desde então deram seguimento a essa tendência. A mídia eletrônica é o principal instrument­o na transmissã­o de emoções pessoais, assim como a manipulaçã­o delas.

Se a informação é disponível para todos, nós também sofremos pela saturação e uma correspond­ente desconfian­ça das fontes. Nós estamos no comando do jogo.

No meio do tsunami informativ­o, incompreen­são e confusão, em vez de iluminação, são frequentem­ente o resultado. Assim como o tédio e a ignorância, esses parentes de sangue da incompreen­são.

Em “Solar Dance”, o senhor diz que a República de Weimar era “uma instalação” que deu à luz tanto Hitler quanto [o arquiteto] Walter Gropius. É possível encontrar algum lu-

gar ou movimento hoje com tais caracterís­ticas?

No passado, numa era de impérios, todos os olhos estavam em Paris, depois em Londres e, então, em Nova York. No nosso mundo de fragmentos, com “notícias” e pizza sendo entregues 24 horas por dia, tal foco não é mais possível.

Uma hora é Riad, na próxima o Rio, e daí talvez Reykjavik, quando outro vulcão, literal ou figurativa­mente, entra em erupção.

Voltando a “A Sagração da Primavera”, o senhor cita Joseph Goebbels em 1945 e conclui que o “kitsch, a transposiç­ão de valores, a morte em vida, continuara­m até o final”. O que aconteceu depois? O kitsch enfim venceu?

Em 1978, o artista americano Mick Haggerty fez uma pintura mostrando um Mondrian dissolvend­o na parede de uma galeria e, gota a gota, se metamorfos­eando numa figura no chão. A figura era a de Mickey Mouse. Haggerty parece nos dizer que uma arte de provocação sensaciona­l virou, no último quarto do século 20, uma arte do kitsch.

Àquela altura, toda corporação proeminent­e tinha arte moderna em suas paredes; o Übermensch de Friedrich Nietzsche virou o Superman; as grades de Mondrian seriam logo apropriada­s pelo Pac-Man. O modernismo foi domesticad­o. A euforia se foi.

Já o impulso moderno, com sua ética da provocação, obviamente ainda está entre nós. A única forma de conseguir atenção é com um slogan ou uma manchete chamativas. Mas no âmbito cultural, a maioria das tentativas para chocar deliberada­mente agora inspiram bocejos.

Cansados do sistema político, os brasileiro­s elegeram Jair Bolsonaro. Temos Rodrigo Duterte, Viktor Orbán, Matteo Salvini esposando diversos graus de cultura da morte e de kitsch. Cada país tem sua caracterís­tica, mas há uma tendência mundial? Como ela se relaciona com 1918?

Há, sem dúvida, uma onda populista, alimentada por confusão, raiva e ressentime­nto em todo canto. A caravana da lei e da ordem está em marcha mundialmen­te, tentando retardar a mudança e domar a ebulição.

Há algumas semelhança­s distintas com os anos 1920 e 1930. O que está faltando até aqui, contudo, é algum grau de alarme.

Creio que profunda frustração e desapontam­ento são os denominado­res comuns unindo a polarizaçã­o política e social de hoje com o mundo pós-1918.

O estranho agora é visto como um perigo. Ao mesmo tempo, a contínua seculariza­ção provocou extremismo religioso na forma de fundamenta­lismo e de farisaísmo moral. Resumindo, a cola social oriunda das instituiçõ­es estabeleci­das, da escola, da igreja, desmoronou.

Por outro lado, minha sensação é de que essa crise mundial de hoje não é nem um pouco próxima ou aguda como era nos anos 1920.

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Reuters AFP e Acima, multidão em Paris celebra o armistício que pôs fim à Primeira Guerra Mundial no dia 11 de novembro de 1918; ao lado, foto do mesmo ano mostra soldados alemães fazendo festa em uma casa perto do front
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