Folha de S.Paulo

Guerra na Síria ainda assombra menina que narrou o horror diário

Bana Alabed, 9, transformo­u em livro relatos na internet da época em que morava na Aleppo sitiada pela guerra

- Débora Miranda

Um dia Bana Alabed sonhou que uma bomba caía em sua casa e matava todo mundo. E ela sobrevivia.

“Eu chorava, e ninguém aparecia, eu estava sozinha. Tentei ir à casa de uma amiga, mas ela também não estava lá. A casa dela havia sido destruída, estava tudo destruído. Fiquei tão assustada! Eu tentei sair do meu sonho e, mesmo dormindo, comecei a chorar.”

Pesadelos como esse ainda assombram a menina de 9 anos que está há quase dois anos fora de Aleppo, na Síria, onde nasceu, passou parte da infância e enfrentou a guerra.

A capital econômica do país foi a cidade mais castigada pela guerra civil iniciada em 2011, que deixou 5 milhões de refugiados, de acordo com a ONU, e mais de 500 mil mortos, segundo a ONG Observatór­io Sírio para os Direitos Humanos, sediada em Londres.

Bana foi resgatada com a família —a mãe, o pai e os dois irmãos mais novos— em dezembro de 2016 e levada para a Turquia, onde vive hoje e de onde conversou com a Folha.

Ficou conhecida mundialmen­te por usar o Twitter para narrar o dia a dia da guerra, falar de seus medos e pedir paz. O relato ocupa agora as páginas de um livro, assinado por Bana e pela mãe, Fatemah, 28, intitulado “Querido Mundo”, que ganhou recentemen­te versão em português.

Os traumas da guerra, porém, são temporaria­mente esquecidos quando Bana fala de um de seus temas favoritos: as princesas da Disney. “Minha favorita é a Rapunzel, por causa do cabelo dela que é longo, mágico e colorido. Gosto de coisas coloridas e mágicas e quero que meu cabelo seja tão longo quanto o dela.”

Afastada do cenário de terror, a pequena escritora faz planos para o futuro. “Quero ser professora para ensinar novas línguas, como francês e inglês. E também quero ser médica, porque gosto de ajudar outras crianças quando elas estão machucadas. Quero poder salvá-las.”

Aos 6 anos, Bana testemunho­u a morte de uma amiga após um bombardeio.

“Como não tínhamos mais ambulância nem a polícia para nos ajudar, algumas pessoas tinham formado um grupo e se oferecido como voluntária­s para ajudar quando as pessoas estavam machucadas ou presas nos escombros. [...] Um homem, então, ergueu um corpo das pedras [...], era Yasmin. Ela estava mole como se estivesse dormindo [...]. Eu não conseguia me mexer ou respirar”, conta , em uma das passagens do livro.

Em outro trecho, Bana fala do receio de que as bombas destruísse­m sua casa —o que acabou acontecend­o. “Eu estava com muito medo de que nosso prédio desmoronas­se em cima de nós e ficássemos enterrados debaixo das pedras. Eu não parava de me perguntar como seria. O que a gente sente quando morre?”

A guerra deixou sequelas que, ainda hoje, a família Alabed tenta superar. “Cada criança síria teve sua vida transforma­da. Muitas perderam os pais, os irmãos, seus familiares. Viram pessoas morrendo”, lamenta Fatemah.

“Às vezes me sinto culpada, porque sei que meus filhos perderam sua infância e eu os pus em perigo, mas nossa esperança era que a guerra terminasse. Tentamos manter a vida que nós conhecíamo­s. Na Síria estão nossas raízes, nossa cultura. Ainda hoje nos meus sonhos estou lá.”

Os irmãos de Bana —Mohamed, 7, e Noor, 5— não querem voltar. Sentem medo. O caçula, por causa do trauma, demorou para começar a falar. Mas a primogênit­a, como a mãe, ainda guarda lembranças preciosas de uma Aleppo que não existe mais.

Ela quer seu país de volta e considera a Síria sua única casa, mas se diz satisfeita com a nova vida na Turquia.

“Estou segura. Brinco sem medo e tenho água limpa para beber. Só que ainda me sinto triste no meu coração, pois queria que as outras crianças pudessem viver como eu.”

A grande repercussã­o faz com que Fatemah ainda se preocupe com a segurança da família. Ela mantém em segredo o local onde vivem e não revela se ainda têm parentes morando em Aleppo.

Faz questão, no entanto, de dizer que, apesar de orientar a filha, deixa que ela aja de acordo com seus princípios.

“Quero falar com as pessoas sobre a Síria, pois precisamos ajudar quem está lá, sofrendo”, explica Bana.

“Com o fim da guerra, todo o mundo estaria salvo, e viveríamos mais felizes. Esse é o meu maior sonho.”

 ??  ?? Bana Alabed, 9, é abraçada pela mãe, Fatemah, em visita a Nova York; elas fugiram para a Turquia em 2016 Karsten Moran - 6.out.17/ The New York Times
Bana Alabed, 9, é abraçada pela mãe, Fatemah, em visita a Nova York; elas fugiram para a Turquia em 2016 Karsten Moran - 6.out.17/ The New York Times

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil