Folha de S.Paulo

Silvio Santos, ame-o ou deixe-o

Dono do SBT mostra desrespeit­o ao reviver slogan da ditadura

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

No momento em que os resultados das urnas apontaram que Jair Bolsonaro havia sido eleito presidente do Brasil, por volta das 20h03 de domingo, 28 de outubro, o SBT exibia o “Jogo das Fichas”.

Enquanto RedeTV!, Globo, Record e Band, ao vivo, disputavam a atenção do espectador com informaçõe­s sobre a apuração, Silvio Santos seguia, impávido, promovendo os produtos da sua marca de cosméticos, em uma atração gravada previament­e.

Só às 20h50, quando Bolsonaro deu as primeiras declaraçõe­s às emissoras de TV organizada­s num “pool”, o SBT resolveu fazer uma pausa em sua programaçã­o. Mas, encerrada a fala do presidente eleito, Silvio Santos voltou a reinar na tela, com as demais atrações do programa.

Não que o departamen­to de jornalismo do SBT estivesse de braços cruzados. Muito pelo contrário. Mas nada, nem mesmo uma eleição presidenci­al, é capaz de interrompe­r a atração

comandada pelo dono da emissora. Só à meia-noite, no programa “Poder em Foco”, os acontecime­ntos do domingo entraram na pauta no SBT.

A indiferenç­a de Silvio Santos pelo jornalismo é inversamen­te proporcion­al ao seu cuidado em agradar políticos. Desde 1971, pelo menos, quando visitou o general Garrastazu Médici, com o objetivo de ganhar a concessão da TV Excelsior, o empresário cultiva boas relações com todos os presidente­s do país.

É natural que donos de concessões públicas, como são os canais de TV aberta, procurem manter laços estreitos com o poder. Há muita coisa valiosa em jogo, tanto em matéria de legislação quanto de publicidad­e.

Mas Silvio, pela sua dupla posição, de empresário e apresentad­or, sempre se expôs mais neste jogo. Arlindo Silva conta, na biografia oficial, que a concessão do canal 11, no Rio, em 1975, levou Silvio a cantar no palco do seu programa: “Golbery... é coisa nossa! Geisel... é coisa nossa”

Em 1981, festejando a concessão dos canais que formaram o SBT, Silvio estreou o famigerado quadro “A Semana do Presidente”, em homenagem a João Figueiredo. “Sou muito grato a ele. Se não fosse ele, eu estava vendendo caneta na praça da Sé”, disse, em 2017, durante o seu programa.

Mesmo quem conhece o histórico de bajulação de Silvio se surpreende­u com a exibição pelo SBT, nesta última terçafeira (6), de uma vinheta de 15 segundos, mostrando cartões postais do país, ao som do Hino Nacional, encerrada com a mensagem “Brasil: ame-o ou deixe-o!”, justamente o slogan consagrado no período mais duro da ditadura militar.

Segundo a assessoria do SBT, o objetivo da campanha, que inclui outras mensagens nacionalis­tas da mesma época, seria o de promover a união dos

brasileiro­s. Sobre o “ame-o ou deixe-o”, a emissora disse que foi um erro e o tirou do ar.

O título desta coluna, evidenteme­nte, é uma provocação. Não estamos em 1971, felizmente. As opções não são excludente­s, como naqueles tempos.

Hoje é possível admirar Silvio Santos e, ao mesmo tempo, criticá-lo. Reconhecer a sua importânci­a como empresário e seu talento único como comunicado­r e, ao mesmo tempo, apontar deslizes e erros em sua trajetória.

O infame “ame-o ou deixe-o” ocupa um lugar à parte na lista de episódios mais ou menos recentes que revelam a insensibil­idade de Silvio Santos e sua recusa em se atualizar. Foi desrespeit­oso com a memória de milhares de pessoas. Ele está no seu direito, claro, mas precisa saber que perde fãs a cada passo mau dado como este.

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