Folha de S.Paulo

Filme derradeiro do diretor Orson Welles não é fácil

De cunho autobiográ­fico, ‘O Outro Lado do Vento’ tem edição frenética, narrativa experiment­al e diálogos sem sentido

- André Barcinski

O Outro Lado do Vento

***** França, EUA, Irã, 2018. Direção: Orson Welles. Elenco: John Huston, Oja Kodar, Peter Bogdanovic­h. 14 anos. Disponível na Netflix

O cineasta Orson Welles morreu em 1985, aos 70 anos, deixando uma série de obras-primas do cinema, como “Cidadão Kane” (1941) e “A Marca da Maldade” (1958). Deixou também vários projetos inacabados, especialme­nte no fim da carreira, quando sua relação com os estúdios hollywoodi­anos estava desgastada e ele tinha dificuldad­es para conseguir financiado­res.

Um desses projetos foi “O Outro Lado do Vento”. Welles começou a rodar o filme em 1970, trabalhou nele até 1976, e editou algumas cenas até 1980. Mas uma sucessão de problemas de produção e financiame­nto prejudicou o projeto, e Welles morreu sem conseguir finalizá-lo.

Depois de décadas guardados em arquivos, os negativos foram negociados com uma produtora, que vendeu a distribuiç­ão para a Netflix.

Agora, 48 anos depois de iniciado, “O Outro Lado do Vento” finalmente pode ser visto. A versão que chega à TV, editada por Bob Murawski, foi feita de acordo com anotações e pedaços de roteiro deixados por Welles.

Sim, “pedaços” de roteiro. Porque Welles nunca teve um roteiro definitivo para a história. Os atores e técnicos que trabalhara­m no filme sempre tiveram a impressão de que ele inventava a história à medida que filmava. A confusão

era tanta que o ator principal do filme, o cineasta John Huston, um dia perguntou: “Orson, sobre que diabos é esse filme?” Welles respondeu, enigmático: “É um filme sobre pessoas como você e eu”.

Apesar de o diretor sempre negar, a verdade é que “O Outro Lado do Vento” era um filme autobiográ­fico. A história é dividida em duas narrativas: a primeira conta o último dia da vida de um cineasta, Jake

Hannaford (John Huston). A segunda mostra o filme em que ele trabalhava quando morreu, uma trama bizarra sobre uma linda mulher (Oja Kodar) perseguida por um homem (Bob Random).

Hannaford era claramente inspirado no próprio Welles: um ex-menino prodígio do cinema, que no fim da carreira batalhava com estúdios para conseguir dinheiro e liberdade criativa. A história espelhava

a de Welles, que depois de estrear com “Cidadão Kane”, passou os 44 anos seguintes implorando por dinheiro.

Quando começou a filmar “O Outro Lado do Vento”, ele havia voltado para Hollywood depois de quase duas décadas filmando na Europa.

“O Outro Lado do Vento” não é um filme fácil. Editado de maneira frenética, tem uma narrativa experiment­al e fragmentad­a. Os personagen­s

são alusões a figuras como o escritor Ernest Hemingway, o ator Mickey Rooney e o cineasta Peter Bogdanovic­h, amigo pessoal de Welles, e que atua no filme.

Vários diálogos parecem fazer sentido apenas para Welles, contendo piadas internas e analogias cujos significad­os só ele sabia. No fundo, é um filme caseiro, mas feito por um dos grandes cineastas de todos os tempos.

Para compreende­r melhor o filme e as circunstân­cias em que foi realizado, uma boa dica é assistir ao documentár­io “Serei Amado Quando Morrer”, de Morgan Neville, que a Netflix estreou esses dias. Por meio de entrevista­s com atores, técnicos e amigos do cineasta, Neville explica o processo criativo de Welles e revela detalhes que ajudam o espectador a entender “O Outro Lado do Vento”.

 ?? Divulgação ?? Orson Welles (à dir., de roupão) em cena ‘Serei Amado Quando Morrer’, documentár­io sobre os bastidores da filmagem de ‘O Outro Lado do Vento’
Divulgação Orson Welles (à dir., de roupão) em cena ‘Serei Amado Quando Morrer’, documentár­io sobre os bastidores da filmagem de ‘O Outro Lado do Vento’

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