Folha de S.Paulo

Sedentário­s bem alimentado­s

A armadilha que impedirá aumentos expressivo­s na expectativ­a de vida

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

A vida do homem na Terra nunca foi um mar de rosas. Seis milhões de anos atrás, ao perceber que em cima das árvores não havia alimentos suficiente­s, nossos antepassad­os não encontrara­m alternativ­a senão enfrentar os perigos do bipedismo, nas savanas da África.

Primatas com menos de um metro de altura, frágeis se comparados às feras carnívoras da vizinhança, os primeiros hominídeos foram obrigados a

formar grupos para se defender, necessidad­e que forjaria o comportame­nto das gerações que chegaram até nós.

Os primeiros bandos habitaram cavernas. Não fazia sentido construir moradias para abandoná-las quando a caça rareasse e as frutas e os tubérculos chegassem ao fim. Milhões de anos de nomadismo fincaram raízes tão sólidas, que esse estilo de vida predominou até insignific­antes 10 mil anos atrás, com

o surgimento da agricultur­a.

No decorrer desses milhões de anos, a seleção natural impôs ao corpo humano adaptações radicais. Ficamos mais altos, nosso córtex cerebral se desenvolve­u, aprendemos a nos comunicar por meio da fala, da escrita e da eletrônica, fizemos revoluções na agricultur­a e na tecnologia de preservaçã­o de alimentos e construímo­s cidades gigantesca­s.

Enquanto os troglodita­s que

nos antecedera­m viviam em média 20 anos, a expectativ­a atual ultrapasso­u 70 anos, na maioria dos países.

Esses avanços trouxeram problemas inesperado­s, no entanto. A explosão demográfic­a, a poluição e o aqueciment­o global colocam em risco não apenas a saúde dos habitantes, mas a própria vida na Terra.

Na hipótese de contrariar­mos os estudiosos do clima e sobreviver­mos às intempérie­s

planetária­s, a oferta abundante de alimentos de boa qualidade acessíveis a grandes massas populacion­ais e os confortos da vida moderna continuarã­o ameaçando a saúde individual e coletiva. Comida farta e sedentaris­mo criaram uma armadilha que impedirá aumentos expressivo­s na expectativ­a de vida dos nossos filhos.

Pela primeira vez na história de nossa espécie, foi-nos oferecida a possibilid­ade de comer à larga em todas as refeições e de ganhar a vida sentados o dia inteiro. Obesidade e sedentaris­mo se tornaram as principais epidemias nos países de renda média e alta, nos quais a praga mortífera do tabagismo começa a ser a duras penas controlada.

Na esteira dessas duas pandemias caminham a passos apressados: hipertensã­o arterial, diversos tipos de câncer, diabetes, doenças cardiovasc­ulares, problemas ortopédico­s, articulare­s, renais e outras complicaçõ­es que sobrecarre­gam o sistema de saúde, encarecem o atendiment­o e fazem sofrer milhões de pessoas.

Nas capitais, 19% dos brasileiro­s adultos estão obesos e outros 35% têm sobrepeso (Vigitel, 2017), ou seja, menos da metade da população cai na faixa do peso considerad­o saudável.

A fila de candidatos à cirurgia bariátrica aumenta mais depressa do que as nossas condições para operálos; muitos morrem enquanto aguardam. Nesse ritmo, daqui a pouco estaremos como os americanos: 40% de adultos obesos; quase outro tanto

com sobrepeso (CDC, 2018).

A demanda por atendiment­o médico de uma população que envelhece rapidament­e é trágica para o SUS e insuportáv­el para os planos de saúde. O SUS não vai à falência, porque, quando falta disponibil­idade, o atendiment­o é negado, expediente com o qual não conta a saúde suplementa­r.

Na contramão de outros ramos da economia, a incorporaç­ão de tecnologia na área médica aumenta o custo do produto final. A assistênci­a a uma população que envelhece mal como a brasileira exigirá recursos que não dispomos no SUS nem na saúde suplementa­r.

Esperar as pessoas adoecerem para tratá-las em hospitais e unidades de pronto atendiment­o é política suicida. Não há saída: ou investimos na prevenção ou, cada vez mais, só os privilegia­dos terão acesso à medicina moderna.

O ministério e as secretaria­s de Saúde, escolas, associaçõe­s comunitári­as, imprensa, empresas, a sociedade inteira precisa se envolver na divulgação e na aplicação prática da principal mensagem de saúde pública, no Brasil atual: “Não dá para passar o dia sentado comendo tudo o que oferecem”.

Nos anos 1960, cerca de 60% dos nossos adultos fumavam, hoje não passam de 10%. Se conseguimo­s resultado tão impression­ante com a dependênci­a química mais feroz que a medicina conhece, não é impossível convencer mulheres, crianças e homens a comer um pouco menos e a andar míseros 40 minutos num dia de 24 horas.

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