Folha de S.Paulo

Quando a melhor opção é abraçar o delírio

Pesquisa do Reino Unido indica que a mudança no tratamento de episódios alucinatór­ios, com o abandono de uma atitude de conflito em relação a eles, pode permitir que pacientes extraiam consequênc­ias positivas dessas experiênci­as

- Por Alex Fradera É redator da BPS Research Digest e psicólogo que trabalha em função terapêutic­a no Serviço Nacional de Saúde britânico

Contemple de que forma a vida de uma pessoa pode ser mudada caso ela comece a ouvir ou ver coisas que os outros não ouvem e veem. Agora imagine que essa experiênci­a possa oferecer algo de positivo.

Uma equipe de pesquisa da Universida­de de Hull e de organizaçõ­es associadas ao Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) do Reino Unido sugere que, em meio ao tumulto, alucinaçõe­s também podem oferecer oportunida­des de cresciment­o pessoal.

Em um artigo publicado pela revista acadêmica Journal of Psychology and Psychother­apy, há alguns meses, a psicóloga clínica Lily Dixon e sua equipe detalham as experiênci­as de sete pessoas que conviveram com alucinaçõe­s auditivas ou verbais. Em meio às dificuldad­es, reportam os pesquisado­res, suas jornadas também as levaram a algumas situações positivas.

Os cinco homens e duas mulheres, com idades entre 28 e 53 anos, foram recrutados para as entrevista­s em organizaçõ­es de saúde mental. Alguns começaram a experiment­ar alucinaçõe­s ainda na infância; outros, mais tarde na vida. Os pesquisado­res entrevista­ram todos os voluntário­s sobre como a experiênci­a promoveu mudanças neles e em seus relacionam­entos; sobre os desafios que enfrentara­m; e sobre suas expectativ­as para o futuro.

Os entrevista­dos todos descrevera­m o surgimento das alucinaçõe­s como um choque nada bem-vindo. “Não quero aceitar que seja esquizofre­nia, porque sempre serei rotulada com essa palavra. Se você diz a alguém que tem esquizofre­nia, a pessoa automatica­mente pensa que você é doente mental e tentará matá-la”, disse Sophie, uma das entrevista­das (os nomes reais dos participan­tes não são usados no relatório).

Ela sentiu que, para continuar a ser ela mesma, precisava rejeitar a experiênci­a: “Estou tentando separar aquela pessoa; gosto de ser quem sou quando não ouço vozes”.

Uma crença comum a muitos dos pesquisado­s era a de que melhorar significav­a reduzir ou eliminar as alucinaçõe­s. Borrar as visões, silenciar as vozes. Mas, com o tempo, eles descobrira­m mudanças em seu foco. Steve reportou um acontecime­nto que ficou em sua memória: “Lembro que estava na casa de minha melhor amiga e ela me recomendou conversar com elas, com as vozes, em lugar de ficar lá resistindo. Fiz o que ela aconselhou e conversei com elas; disse um oi. Elas respondera­m: ‘Ah, você enfim decidiu falar conosco?’ Fiquei pasmo”.

Dar aquele passo, partir da negação e do conflito para o engajament­o, teve consequênc­ias para Steve, que passou a sentir que as vozes eram “mais prestativa­s que perturbado­ras”. “É como ter um monte de amigos com quem falo todos os dias.”

Outros ecoaram essa ideia de que quando uma pessoa encara suas experiênci­as alucinatór­ias, em lugar de combatê-las, surge a possibilid­ade de extrair algum valor da experiênci­a. A tal ponto que a perspectiv­a de deixar as vozes para trás pode já não parecer uma cura.

“Muita gente pergunta o que eu faria se pudesse mudar as coisas, mas não sei se as mudaria, sabe? Aprendi a aceitar que isso é parte de mim agora”, disse um entrevista­do. Outro afirmou que, sem suas alucinaçõe­s, ele se sentiria “oco”.

O que de bom poderia vir das alucinaçõe­s, exatamente? As respostas são difíceis de enquadrar, porque nenhum dos entrevista­dos as vê como um bem inquestion­ável, e eles não querem tentar o destino ao adotar um otimismo ingênuo.

Uma das tônicas era a força que uma pessoa ganha como consequênc­ia de suas batalhas constantes. Debbie disse, de maneira hesitante: “Não me deixei derrotar, me tornei mais resistente... A voz me deu mais força e de alguma maneira fez de mim a pessoa que sou, mais forte”.

Outro

traço positivo é que as alucinaçõe­s intermedia­vam uma mudança de perspectiv­a com relação aos outros e mesmo com relação à experiênci­a em si. “Talvez eu agora mostre mais empatia, mais do que costumava”, disse um entrevista­do. Outro descreveu: “O processo mudou a maneira pela qual vejo os outros, penso sobre as atitudes dos outros e a maneira da qual me vejo”.

O comentário autoinquis­itivo de Paul oferece uma visão especialme­nte expansiva: “Creio que eu teria sido muito mais destrutivo, em lugar de construtiv­o, se não estivesse vendo e ouvindo coisas... Creio que isso mudou minhas perspectiv­as sobre... Sobre certas coisas, sabe, ou simplesmen­te me ensinou a sentar e ver o mundo passar, em lugar de tentar derrotá-lo”.

O que facilitou essa jornada do desânimo a um cresciment­o, ainda que agridoce? Os relatórios sugerem que participaç­ão, aceitação e apoio emocional —ter “alguém que ouça”— foi essencial.

Mas a jornada às vezes requer que a pessoa se mova contra o vento dominante. Um entrevista­do aconselhou: “Não desista de querer se tornar você, em lugar de [se adaptar] à sociedade em que você vive ou qualquer outra coisa, esqueça tudo isso, esqueça tudo mais, você tem de se sentir confortáve­l com você mesmo”.

A qualidade dos serviços profission­ais também foi crucial: clínicos que oferecem visões alarmistas e que estigmatiz­am os pacientes são um obstáculo comum. O apoio que pareceu mais útil se baseia na introdução de técnicas como mindfulnes­s e relaxament­o e no engajament­o com a rede Hearing Voices (ouvindo vozes), que mostra aos pacientes que eles não estão sozinhos.

Essa normalizaç­ão e engajament­o significa que ter uma experiênci­a atípica de realidade já não separa a pessoa da sociedade, mas oferece um papel diferente no qual as experiênci­as de uma pessoa podem fazer diferença. Não se trata de uma história simples. Os participan­tes continuam a ver suas alucinaçõe­s como algo que os atrapalha, mas agora essa visão é misturada com a possibilid­ade de algum enriquecim­ento.

A equipe de Dixon recomendou que profission­ais, amigos e parentes (mas especialme­nte os clínicos) próximos das pessoas que têm esse tipo de experiênci­a evitem estigmatiz­á-las e as apoiem de todas as maneiras, compreende­ndo que o fato de manterem uma relação complexa com a realidade não as torna pessoas menos plenas.

Este texto foi originalme­nte publicado pelo site Aeon, adaptado de um artigo do periódico The British Psychologi­cal Society’s Research Digest. Tradução de Paulo Migliacci.

 ?? Rafael Corrêa Cartunista ?? Eileen Gray construiu a casa E-1027 entre 1926 e 1927; anos depois, Le Corbusier pintou nas paredes brancas vários murais , para desgosto da designer, que projetou também todo o mobiliário, até o do banheiro
Rafael Corrêa Cartunista Eileen Gray construiu a casa E-1027 entre 1926 e 1927; anos depois, Le Corbusier pintou nas paredes brancas vários murais , para desgosto da designer, que projetou também todo o mobiliário, até o do banheiro

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