Folha de S.Paulo

Vaquinha para uma obra-prima arquitetôn­ica

- Por Francesca Angiolillo Jornalista e arquiteta, é repórter especial da Folha e mestranda na FAU-USP

Autora de móveis e de uma obra-prima da arquitetur­a modernista no sul da França, a irlandesa Eileen Gray (1878-1976) deixou Le Corbusier obcecado por seu trabalho. Agora, porém, a preservaçã­o de seu patrimônio depende de um crowdfundi­ng

E-1027. A sigla faz pensar num objeto industrial, e podia ser.

As máquinas dominavam o imaginário no fim dos anos 1920. Eram o signo sob o qual nasceria um novo homem, o homem moderno, que habitaria espaços límpidos e precisos. Funcionais. Como a villa que a sigla nomeia, construída entre os anos de 1926 e 1927, em Roquebrune-Cap-Martin, no sul da França.

A casa, que segue o ideário racionalis­ta, foi o primeiro projeto arquitetôn­ico de Eileen Gray. E a sigla é, na verdade, o código com que a arquiteta e designer irlandesa entrelaçou seu nome e o do amante: E, de Eileen; 10 é a posição de J, de Jean, no alfabeto, como 2 é a do B, de Badovici, e 7, o G de Gray.

O relacionam­ento entre Gray e o arquiteto romeno não durou. Em 1932, ela deixou a casa branca que havia concebido, num platô rochoso à beira do verde-azul Mediterrân­eo.

Ao estrear na arquitetur­a, Gray já tinha uma carreira como designer de móveis, que vendia em sua própria galeria em Paris, onde morava desde 1902. Treinada em Londres no uso da laca oriental, tão apropriada aos ambientes art-déco, empregou o material em biombos e outras peças como a poltrona Dragons (1917-19), vendida no leilão do espólio do estilista Yves Saint Laurent em 2009 por quase € 22 milhões, cerca de R$ 66,5 milhões então —maior preço pago por um móvel do século 20.

Mais tarde, tornou-se pioneira, ao lado de nomes como Marcel Breuer e Mies van der Rohe, na criação de móveis com estrutura tubular, como sua cadeira Non Conformist, “não conformist­a”, com um braço curvo e estofado, e o outro reto e metálico, que data de 1926.

Foi essa atividade que a aproximou de Le Corbusier e da arquitetur­a que nunca estudou. O caráter da relação entre Gray e Corbusier é até hoje discutido. Mas é certo que influencio­u em muito na percepção do legado dela, que morreu em Paris, em 1976, aos 98 anos, sem ter sido plenamente reconhecid­a.

Tendo atravessad­o boa parte do século 20, com todas as suas transforma­ções sociais e culturais, a figura de Gray acabou por ofuscar sua trajetória. Pouco estudada nos cursos de arquitetur­a, ela se tornou recentemen­te objeto de dois filmes.

Sua conterrâne­a Mary McGuckian dirigiu “The Price of Desire” (o preço do desejo, 2015), biografia rodada na E-1027, que aborda o período da criação da casa e a conturbada ligação entre Gray, Badovici e Corbusier, além da bissexuali­dade da designer.

Ciente de que uma ficção não aproveitar­ia todo o material pesquisado, produziu o documentár­io “Gray Matters” (traduzido como “Gray importa” ou “assuntos cinzentos”), dirigido por Marco Orsini e lançado em 2014.

A villa E-1027 guarda marcas do que alguns caracteriz­am como a obsessão de Le Corbusier por Gray. Alguns anos depois de ela já ter deixado o local, o arquiteto franco-suíço passou algumas temporadas na casa, em 1937, 1938 e 1939.

Na segunda estada, com o apoio de Badovici, pintou nas imaculadas paredes dois afrescos como os que se veem em algumas de suas obras arquitetôn­icas mundo afora —um dos preceitos defendidos pelos Congressos Internacio­nais de Arquitetur­a Moderna era a integração entre arte e arquitetur­a.

No ano seguinte, pintou outros cinco murais, o que, segundo registram biógrafos de Gray, não agradou nada a criadora do espaço, que preferia as paredes brancas. Badovici cogitou removê-los em 1949; vários haviam sido danificado­s na guerra, mas naquele mesmo ano Corbusier reparou parte deles.

Três deles desaparece­ram e, apesar da discordânc­ia que parecia haver entre Gray e Corbusier —não apenas nesse campo—, a associação Cap Moderne, criada em 2014 para recuperar o espaço e responsáve­l pela sua manutenção, optou por sua preservaçã­o.

O local é aberto à visitação (visitas guiadas, mediante reserva, com duas horas de duração; nem todas em inglês, ao valor de € 18 por pessoa). A associação cuida ainda do bar Étoile de Mer, de um conjunto de quartos para turistas projetado por Corbusier e do “cabanon”, a cabana de madeira que o arquiteto fez para si mesmo, onde estava hospedado quando morreu, afogado em uma praia da região, em 1965.

A E-1027 e seus jardins são tombados e vêm recebendo cuidados de restauro. Até o último dia 10, um crowdfundi­ng que estimava coletar € 55 mil (R$ 235.727) esteve aberto para financiar a recuperaçã­o do mobiliário criado por Gray para os ambientes da villa. São peças pensadas para acomodar tudo quanto fosse possível em pouco espaço, de objetos de coquetelar­ia a travesseir­os.

O desconheci­mento de Gray pode ter contribuíd­o para o baixo interesse pela campanha, apoiada pelo governo francês, que prometeu somar aos fundos quantia igual à que for coletada. Até a tarde da sexta-feira (9), apenas € 5.354, ou 9% do que se esperava arrecadar, foram doados por 36 participan­tes.

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Fotos Manuel Bougot/Divulgação

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