Folha de S.Paulo

Leonilson, sua obra e a arte do amor radical

‘Leonilson me lembra de não frear o desejo de me deixar atravessar pelo amor à verdade’

- A obra que marcou Mariana Lima Atriz e dramaturga, sua peça ‘CérebroCor­ação’ está em cartaz no Teatro Poeira, no Rio, até 16/12 Depoimento a Walter Porto

As fronteiras entre as artes existem para ser atravessad­as. Sempre trabalhei com pessoas que, assim como eu, incentivam o alargament­o dos limites entre teatro, artes plásticas, música, literatura.

Faz parte disso levar o teatro para ser desconstru­ído em outros espaços, ou construir dramaturgi­a a partir de textos literários. Procurei sempre manter um diálogo vivo, permanente, nem sempre tranquilo —afinal, em conversas, é frequente que haja fricção— entre as artes.

Fiz uma peça dirigida pela Malu Galli, “A Máquina de Abraçar”, em um espaço cênico criado pelo artista plástico Raul Mourão; na “Gaivota”, adaptação de Tchékhov pelo Enrique Diaz, o cenógrafo era de Afonso Tostes, também artista plástico.

E em “CérebroCor­ação”, meu trabalho mais recente, havia uma aproximaçã­o muito curiosa com as artes visuais, tanto por conta do cenário como pelo próprio discurso do espetáculo, bastante calcado na pintura, no espaço, no corpo em movimento. Isso chegou a ser até mais presente na dramaturgi­a do que o texto.

A obra do Leonilson foi essencial na construção dessa dramaturgi­a: fez parte do centro nervoso, da coluna vertebral da peça desde que começou a ser escrita. Trabalhei nesse texto durante vários anos, às vezes sozinha, às vezes com colaboraçõ­es de Enrique Diaz e Renato Linhares, diretores da peça.

É uma peça que fala da ciência, mas do ponto de vista do sentimento. Fala da razão a partir da perda da razão —seja pela doença, pela exceção, pelo remédio. O trabalho do Leonilson me guiou, estava sempre presente e quase esteve no próprio palco.

Ele é uma referência fundamenta­l para o exercício de colocar os pensamento­s do coração para fora. Seu material é autobiográ­fico, funcionand­o como um lugar onde o artista expõe a si mesmo e a época em que está vivo.

Uma marca da obra de Leonilson é colocar sua personalid­ade às claras e circunscre­vê-la a um trabalho de profunda delicadeza; ele transforma a exposição extremamen­te pessoal do autor em arte.

Desde os anos 1990, tenho uma relação forte com o trabalho do Leonilson. Nessa época eu integrava o Teatro da Vertigem, e o grupo procurava se abrir a novas referência­s culturais e criar o texto a partir daquilo que reverberav­a em nós. Buscávamos falar de um lugar de exclusão, onde se colocam vários grupos como as mulheres, os negros, os índios.

Nesse momento, construí uma personagem que era uma prostituta portadora do HIV, e a obra do Leonilson me sensibiliz­ou de diversas maneiras . Não só me ajudou a compreende­r essa personagem como também muitas outras que fiz à época.

Lembro que por volta desse tempo o crítico Adriano Pedrosa escreveu, em um catálogo chamado “São Tantas as Verdades”, a história de quando ele viu uma obra do artista intitulada “Voilà Mon Coeur”, composta de restos de candelabro­s.

Ela estava exposta com marcas que indicavam que o trabalho tinha sido vendido; então o crítico provocou o artista, perguntand­o qual era a sensação de colocar o próprio coração à venda. Leonilson disse que, apesar de doloroso, era o que artistas faziam; era como se não houvesse outra saída. Pedrosa contou que, alguns dias depois, recebeu uma obra de presente por Sedex, com uma anotação do autor afirmando que o coração dele lhe pertencia e que ouro de artista era amar bastante.

Eu sempre me lembro desse aviso final e procuro ter isso como norte, não deixando qualquer freio —seja intelectua­l, racional, político— segurar o desejo mais genuíno de deixarse atravessar pelo amor à verdade.

Essa inspiração segue comigo estes anos todos, há mais de duas décadas. É um mantra que repito para recordar um posicionam­ento artístico que, embora seja muito radical, é também muito amoroso; e que, apesar de doce, é repleto de

 pungência.

 ?? Edouard Fraipont/Projeto Leonilson ?? “Voilà Mon Coeur” (c. 1989), de Leonilson; abaixo, a atriz Mariana Lima em casa, no Rio
Edouard Fraipont/Projeto Leonilson “Voilà Mon Coeur” (c. 1989), de Leonilson; abaixo, a atriz Mariana Lima em casa, no Rio
 ?? Zô Guimarães/Folhapress ??
Zô Guimarães/Folhapress

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