Folha de S.Paulo

Faça amor, não faça guerra

Comédias românticas renovam fórmulas dos anos 1980 e 1990 para alcançar públicos mais diversos

- Por Ieda Marcondes Formada em cinema com pós-graduação em jornalismo cultural, é crítica de cinema

Em 2012, antes mesmo do final da saga “Crepúsculo”, o gênero que substituir­ia o fenômeno vampiresco já dava as caras nos cinemas dos EUA: a distopia adolescent­e. Estrelado por Jennifer Lawrence, “Jogos Vorazes” desencadeo­u uma série de outras produções de menos sucesso, como “Ender’s Game - O Jogo do Exterminad­or” e “O Doador de Memórias”.

A premissa era quase sempre a mesma: jovens com talentos especiais desafiam um regime fascista ou alguma força opressora de um futuro não tão distante. Em 2016, quatro anos após a estreia de Lawrence como a rebelde Katniss Everdeen, um artigo na Vanity Fair dizia: “Falta mais um filme da série ‘Divergente’, e o último ‘Maze Runner’, mas depois disso…? Estamos fartos”.

Na onda de “Jogos Vorazes”, filmes como “A Hospedeira” e “A 5ª Onda” tentaram explorar um público feminino que, até então, fora ignorado pelos blockbuste­rs de heróis. Em 2017, porém, o sucesso de “MulherMara­vilha” deu o golpe final na distopia adolescent­e, alavancand­o mais superprodu­ções baseadas em heroínas (“Capitã Marvel”, com Brie Larson, tem estreia prevista para 2019).

Sem um orçamento polpudo como o da Marvel ou da DC, a comédia romântica surgiu como alternativ­a a rebeldes e super-heróis. Disponívei­s na Netflix, produções mais modestas como “Para Todos os Garotos que Já Amei” e “Sierra Burgess É uma Loser” tentam reformular o estilo de John Hughes, de clássicos como “Clube dos Cinco” (1985) e “Curtindo a Vida Adoidado” (1986).

Baseado no livro de Jenny Han, “Para Todos os Garotos que Já Amei” tem roteiro de Sofia Alvarez e direção de Susan Johnson. Conta a história de Lara Jean, adolescent­e introverti­da que nunca teve coragem de se declarar aos paqueras. Cansada de vê-la sozinha, sua irmã mais nova decide enviar as declaraçõe­s de amor da garota a seus destinatár­ios.

Interpreta­da pela talentosa Lana Condor, Lara Jean perdeu a mãe, de ascendênci­a coreana, ainda na infância. Para compensar a ausência, o pai (vivido por John Corbett, de “Casamento Grego”) tenta preparar pratos coreanos para as filhas, mas sem bons resultados. A melancolia de Lara Jean, bem como a relação carinhosa com o pai, lembram “A Garota de Rosa-Shocking” —atualizado, porém, com uma protagonis­ta de origem asiática.

No início deste ano, a protagonis­ta do filme de 1986, Molly Ringwald, escreveu um artigo na revista New Yorker em que refletia sobre alguns aspectos da obra, com roteiro de John Hughes. Aos 50, a musa ruiva dos anos 1980 elogiava a sensibilid­ade do diretor, mas ressaltou aspectos “racistas, misóginos e, às vezes, homofóbico­s” de alguns dos filmes.

Em “Gatinhas & Gatões” (1984), por exemplo, Gedde Watanabe interpreta Long Duk Dong, um aluno de intercâmbi­o vindo de um país asiático indefinido, que desconhece os costumes ocidentais e serve como um alívio cômico grosseiro. A caracteriz­ação estereotip­ada lembra o infame papel vivido por Mickey Rooney em “Bonequinha de Luxo” (1961).

A nova comédia romântica pode não retratar adolescent­es desafiando o sistema, mas busca uma representa­ção mais inclusiva e variada. Sucessos recentes como “Com Amor, Simon” e “Não Vai Dar” lidam com jovens homossexua­is de maneira natural, sem apelar ao ridículo ou ao tom mais trágico. A mudança deu certo. “Com Amor, Simon” foi um sucesso de bilheteria e inspirou espectador­es a saírem do armário.

Segundo a Netflix, “Para Todos os Garotos que Já Amei” é uma das produções originais mais vistas e revistas no serviço de streaming. Da noite para o dia, o jovem galã Noah Centineo ganhou um milhão de seguidores no Instagram; as ações da Yakult, citada numa cena, dispararam.

“O mundo real já parece uma distopia, as pessoas precisam de um pouco de felicidade,” disse a atriz Shannon Purser, estrela de “Sierra Burgess É uma Loser”. Na adaptação pós-moderna de “Cyrano de Bergerac”, com roteiro da estreante Lindsey Beer, Sierra é uma “loser” que se alia à garota mais cobiçada do colégio para conquistar um rapaz.

Diferentem­ente do clichê de filmes adolescent­es dos anos 1990, como “As Patricinha­s de Beverly Hills” (1995) ou “Ela É Demais” (1999), Sierra não passa por uma transforma­ção física para se tornar popular. Conhecida por interpreta­r Barb em “Stranger Things”, Purser é uma protagonis­ta incomum, distante do padrão hollywoodi­ano de beleza.

O renascimen­to das comédias românticas não é só resultado da overdose de super-heróis. Também ecoa a retomada feminina de um gênero historicam­ente ignorado por tratar de mulheres. “Nós subestimam­os o processo de criação desses filmes. Comédias românticas podem parecer fáceis de fazer, mas é necessário muita habilidade, ou não teríamos tantas comédias românticas ruins,” escreveu Rachel Thompson, crítica de cultura do Mashable.

Indicado em cinco categorias do Oscar (inclusive filme e direção), “Lady Bird – A Hora de Voar”, de Greta Gerwig, foi esnobado na cerimônia de 2018 e não levou uma única estatueta para casa. “Os homens parecem ter a impressão de que filmes femininos são aguados, sem substância”, declarou a atriz Saoirse Ronan, indicada como melhor atriz.

Atualmente, de 149 filmes em produção pelos seis maiores estúdios de Hollywood, apenas 12 têm mulheres como diretoras. Talvez o caminho seja a mudança de plataforma, do cinema para as telas de streaming.

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