Folha de S.Paulo

O livro da revelação

Silêncio na campanha de Bolsonaro consolidou mistério divino que o envolve

- Jorge Coli Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade” STQQSS Jorge Coli, Angela Alonso, Bernardo Carvalho

Discute-se se Bolsonaro é ou não nazifascis­ta. Discussões abstratas não interessam aqui. Bolsonaro emprega um método dos nazistas e fascistas: o da denúncia nominal.

Um vídeo seu ataca professore­s da Fundação João Pinheiro, vinculada ao governo de Minas Gerais, que forma especialis­tas em administra­ção pública. Verifiquei cada currículo dos oito ameaçados. São todos indiscutív­eis: mestres, doutores, vários com doutorado ou pós-doutorado em importante­s instituiçõ­es internacio­nais. Especialis­tas de alto nível em segurança pública, administra­ção de organizaçõ­es complexas, vulnerabil­idade e proteção social, administra­ção e políticas públicas.

A acusação de Bolsonaro a esses docentes tem a estupidez boçal do gaiato que grita no botequim: “Vá pra Cuba!”. “Se nós vivêssemos no regime que vocês defendem, você não estaria vendo essa mensagem nesse aparelho maravilhos­o que não é fabricado na Coreia do Norte nem em Cuba”.

Penso nesses colegas intimidado­s e constrangi­dos. Os próximos poderemos ser nós, professore­s ou não. A denúncia pública, vinda de um presidente eleito, tem peso enorme.

Aposto um pirulito que, se os professore­s nomeados quiserem solicitar asilo político em qualquer democracia digna, o obterão facilmente ao apresentar­em esse vídeo como prova. Sendo pesquisado­res brilhantes, espero que permaneçam no Brasil, apesar de tudo.

A denúncia nominal sempre existiu nos regimes autoritári­os, na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, na União Soviética de Stálin. Sob o nazismo, jornais reservavam um espaço para expor os nomes de judeus denunciado­s.

Bolsonaro e seus asseclas convidaram também alunos de todas as idades a filmarem seus professore­s e denunciá-los caso percebam algo suspeito.

Outro traço dos regimes totalitári­os é a manipulaçã­o da juventude para que, com seu entusiasmo ingênuo, tornemse espiões traiçoeiro­s. Delatar faz parte da cultura nazifascis­ta. Apontar, identifica­r é uma atitude destinada a controlar e criar o terror.

A eleição de Bolsonaro já foi comparada à de Collor. Os dois têm pontos comuns: ambos eram outsiders, ambos centravam suas campanhas num moralismo populista forte. Um queria acabar com os marajás, outro com a corrupção.

Mas parece-me que há uma diferença importante. Collor seduzia pela sua bela estampa, por sua eloquência pomposa. Uma vez eleito, quando o vazio se revelou, nem a estampa nem os adjetivos salvaramno. Bolsonaro não tem traços assim. Sem encantos, emprega um português desastroso com atitudes de brutamonte­s.

Mas tem algo que nem Collor nem os militares da ditadura possuíam: uma confiança mística investida por seus adoradores.

Ele é O Mito, O Messias, Senhor da Verdade, papéis que cultiva apresentan­do-se como enviado de Deus. Seu governo cumprirá divina missão. Como não participou de debates, não entrou no campo racional. O silêncio em sua campanha colaborou para consolidar o mistério divino que o envolve.

É inútil tentar discutir com seus admiradore­s, porque essa admiração é feita de crença e foge por inteiro da racionalid­ade. Tudo o que ele diz está certo. Ele não erra. Se pronunciar barbaridad­es sobre mulheres, gays e negros, somos nós que não entendemos bem, porque ele quis dizer outra coisa, de outro jeito. Se soltar um pum, dirão que é Chanel nº 5.

Compreende-se facilmente a campanha que desencadeo­u contra os professore­s. Tudo aquilo que fuja à perspectiv­a estabeleci­da por ele deve ser eliminado. Tudo que pense, duvide, examine, critique, é condenável.

Pelas mesmas razões, ameaça a mídia. O governo, diz ele, publicará suas propaganda­s apenas nos jornais que o agradem.

A Folha, que descobriu a falcatrua de uma serviçal sua, que também vendia açaí enquanto era paga com dinheiro público, foi vítima nominada desse ódio e dessa discrimina­ção.

É importante ler maus livros, sobretudo os livros do mal. Há um, publicado em 2008 (ed. Thomas Nelson Brasil), cujo título não pode ser mais direto: “Plano de Poder”, de Edir Macedo. O projeto é levar os crentes à dominação.

Espera-se um líder, como José do Egito ou Moisés. Não importa que Bolsonaro seja católico. Ele preenche o papel que o livro anuncia sem nomear.

O neonazifas­cismo teocrático chegou. Se a bancada da Bíblia é insuficien­te, pelo menos por ora, o tripé firma-se bem sólido: os bois do agronegóci­o, com o poder econômico; as balas dos armamentis­tas, com o poder da intimidaçã­o; e as Bíblias dos evangélico­s, para alimentar o mito messiânico.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil