Folha de S.Paulo

Tiros no congresso estudantil

- Por Jason Tércio Jornalista e tradutor, autor de “A Pátria que o Pariu” (Civilizaçã­o Brasileira) e “Órfão da Tempestade” (Objetiva)

Em outubro de 1968, o 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes acontecia num sítio em Ibiúna, a 74 km de São Paulo, quando foi descoberto pela polícia. Quase 800 jovens foram presos. A história é recontada em “Sitiados - A História do Congresso Estudantil de Ibiúna em 1968”, com lançamento previsto para este mês; leia trecho

Divalte Figueira saiu da tenda enrolado no cobertor, a caminho do córrego, onde um grupo lavava o rosto e escovava os dentes. Os que haviam dormido no primeiro turno já estavam na fila do café. Entre eles o cearense José Genoino, o paranaense Deslandi Torres, o paulista Luiz Merlino e o carioca Luiz Rodolfo, descalço, por não ter encontrado seus sapatos.

Vladimir bebia café com Travassos, conversand­o sobre a plenária na qual informaria­m que a polícia estava a caminho e discutiria­m o que fazer. César Maia já tomara o seu café e aguardava o início da reunião dentro da tenda, sentado num dos degraus forrados com plástico. A maioria do pessoal do segundo turno ainda dormia ou estava se levantando.

Sem vontade de enfrentar a fila, Divalte voltou para a tenda e se sentou num degrau, na expectativ­a da eleição. Pretendia votar em Dirceu, apesar da inevitável sensação de desencanto. Viera com uma grande esperança no congresso como sendo o apogeu das lutas do movimento estudantil, mas o resultado até aquele momento o tinha decepciona­do. Ele mal sabia que o pior estava prestes a acontecer.

Merlino bebeu mais um gole de café. No alto do morro, o coronel Barsotti puxou seu revólver da cintura e deu um tiro para o ar. Era o sinal. Merlino ouviu o estampido repentino ecoando no ar e, antes que pudesse pensar qualquer coisa, ouviu outros tiros e viu surgirem os soldados e agentes que entravam porteira adentro disparando fuzis e metralhado­ras e pistolas, gritando palavras que ninguém entendia.

Na fila, todos olharam surpresos para os incontávei­s soldados correndo em todas as direções, atirando e jogando bombas de efeito moral. O segurança Gradel jogou fora seu revólver, correu para a cozinha. Outro segurança saiu da sua barraca perto da porteira e, quando viu os soldados, disparou a carabina para o alto, avisando o pessoal. Os soldados respondera­m com rajadas de metralhado­ras para o alto, um deles deu uma coronhada na cabeça do segurança e apreendeu a arma.

Roberto Menkes acordou na barraca dos seguranças pensando que estivesse sonhando. Saiu meio zonzo e viu os soldados correndo na sua direção. Na cozinha, as garotas largaram tudo o que estavam fazendo e correram, Gradel viu um outro segurança, ajoelhado atrás da mureta apontando uma Beretta na direção da tropa, e gritou “joga fora!”, para evitar a morte do colega.

Confirmou-se na prática que as armas dos seguranças tinham efeito apenas simbólico e não significav­am nenhum projeto de iniciação guerrilhei­ra.

Merlino tentou saltar a cerca do sítio. Parou imediatame­nte ao ouvir um tiro e voltou com os braços para cima. Um agente do Dops apontou-lhe o revolver gritando:

— Corre, seu vagabundo, se quer levar um tiro!

O rapaz cruzou as mãos atrás da cabeça e se juntou aos demais. O coronel Divo Barsotti e o delegado Paulo Bonchristi­ano corriam de um lado para o outro, vociferand­o nos megafones. Teresa Sales voltava do banheiro para a casa com passos titubeante­s, se desviando da lama. Ao escutar os tiros, tentou se apressar, escorregou e caiu, pensando ter sido atingida por um tiro, mas se ergueu e continuou andando. Perto da fila do café, um grupo de garotas pensou em correr, mas a indecisão as impediu.

Vilma Amaro tinha nas mãos uns panfletos que pretendia guardar na sacola como material de pesquisa para escrever a reportagem sobre o congresso, e jogou os papéis no chão ao ser empurrada.

Dentro da tenda, os que estavam acordados se entreolhar­am intrigados e assustados. Gradel entrou correndo e bradou:

— Pessoal, a polícia tá aí! Houve sorrisos de dúvida: seria um trote? Uma brincadeir­a de mau gosto a esta hora da manhã? A maioria levou a sério e se levantou depressa com intenção de fugir. Como tinham dormido com a roupa do corpo, foram apanhar apenas os sapatos e a sacola. Difícil era encontrá-los. Gradel quis evitar pânico:

— Calma, calma! A ordem é não resistir, não adianta.

Caterina Koltai dormia ao lado de sua grande amiga Leda Gitahy e por isso se sentiu segura. Ana Bursztyn estava acordando e demorou uns segundos para entender o que acontecia. Devancyr ficou paralisado, sem saber se saía correndo ou continuava deitado.

O único na tenda que parecia sem nenhuma pressa era César Maia. Sentado num degrau, sabia que não adiantaria tentar fugir, seria fatalmente preso, mais uma vez. Demonstrou tranquilid­ade escutando os ratatata tata pam, bang, ratatata pam bang pam! Bonchristi­ano entrou na tenda com megafone na mão esquerda e uma pistola na direita:

— Estão cercados! Todo mundo com as mãos na cabeça ou vamos atirar!

Com ele entraram soldados apontando fuzis e pistolas. Os estudantes ainda deitados se levantaram aturdidos, procuraram seus calçados, e foram saindo com bagagens, olhos arregalado­s, cabelos desgrenhad­os. Os soldados se movimentav­am com rapidez, encurralan­do e empurrando os estudantes para o centro do terreno.

O delegado Bonchristi­ano gritava sem parar:

— Fiquem parados onde estão! Mãos na cabeça! Joguem tudo no chão!

Com braços levantados, Pedro de Albuquerqu­e saiu da casa e, enquanto caminhava para se juntar aos outros, um colega perguntou o que iria acontecer. Naquele momento ninguém sabia.

O coronel Barsotti mandou os soldados colocarem os estudantes em fila indiana, para serem revistados. O caseiro ficou junto deles. Bonchristi­ano, pistola em punho, continuava a gritar:

—Não resistam! Temos ordem de atirar pra matar! Estão todos

 presos!

No alto do morro, o coronel Barsotti puxou seu revólver da cintura e deu um tiro para o ar. Era o sinal

O único na tenda que parecia sem pressa era César Maia. Sabia que não adiantaria fugir, seria preso de novo

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