Em divergência com Bolsonaro, Cuba sai do Mais Médicos
Presidente eleito exige teste de qualificação e recebimento integral do salário; programa, criado pelo PT, corre risco
Por divergir de declarações e condições impostas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), o governo de Cuba anunciou sua saída do Mais Médicos no Brasil.
A decisão causa risco de esvaziamento do programa criado em 2013, na gestão Dilma Rousseff (PT). Cerca de 1.600 municípios que fazem parte do Mais Médicos só têm cubanos nas vagas.
Cuba atribuiu o rompimento a questionamentos de Bolsonaro quanto à qualificação dos médicos e a seu plano de mudar a parceria.
Em rede social, o presidente eleito exigiu “aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais, hoje a maior parte destinado à ditadura [cubana], e liberdade para trazerem suas famílias [para o Brasil]”.
Hoje, o Mais Médicos tem 18.240 vagas —2.000 delas estão abertas. Das preenchidas, 8.332 são ocupadas por profissionais de Cuba.
Com o desligamento deles, pequenas cidades do Nordeste já temem a ocorrência de um apagão médico.
O Ministério da Saúde planeja um edital para substituir, com brasileiros, os cubanos.
O governo de Cuba anunciou nesta quarta-feira (14) sua saída do Mais Médicos no Brasil por divergir de declarações e condições impostas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).
O rompimento ameaça esvaziar o programa criado em 2013, sob Dilma Rousseff (PT), e que tem metade do total de vagas preenchidas com profissionais do país caribenho.
Atualmente, cerca de 1.600 municípios que fazem parte do Mais Médicos só têm cubanos nas vagas do programa.
O governo de Cuba atribuiu a decisão a questionamentos de Bolsonaro à qualificação dos médicos e ao plano de mudar a parceria, exigindo revalidação de diplomas no Brasil e contratação individual.
“Condicionamos a continuidade do programa Mais Médicos à aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou”, disse Bolsonaro, pelo Twitter.
“Além de explorar seus cidadãos ao não pagar integralmente os salários dos profissionais, a ditadura cubana demonstra grande irresponsabilidade ao desconsiderar os impactos negativos na vida e na saúde dos brasileiros e na integridade dos cubanos”, acrescentou, mais tarde.
O presidente eleito também chamou as condições atuais do programa de “trabalho escravo”, admitiu a possibilidade de dar asilo político a cubanos, mas contestou a qualidade dos profissionais.
“Vocês mesmos [jornalistas]: eu duvido quem queria ser atendido pelos cubanos”, afirmou Bolsonaro. Ele disse que profissionais de outros países podem ser atraídos ao programa e que, a partir de janeiro, pretende “dar uma satisfação a essas populações que serão desassistidas”.
Diferentemente do que acontece com os médicos brasileiros e de outras nacionalidades, os cubanos do Mais Médicos recebem apenas parte do valor da bolsa paga pelo governo do Brasil. Isso porque, no caso de Cuba, o acordo que permite a vinda dos profissionais é firmado com a Opas (Organização Panamericana de Saúde), e não individualmente com cada médico.
Pelo contrato, o governo brasileiro paga à Opas o valor integral da bolsa (R$ 11.865), que, por sua vez, repassa a quantia ao governo cubano. Havana paga uma parte aos médicos (cerca de um quarto) e retém o restante.
O Ministério da Saúde, sob gestão Michel Temer (MDB), disse planejar um edital para repor vagas que devem ser abertas. “Vamos trabalhar para que os brasileiros assumam. Teremos um edital imediatamente”, afirmou à Folha o ministro Gilberto Occhi.
Existe, no entanto, uma histórica dificuldade dos governos brasileiros de conseguir médicos interessados em trabalhar em regiões mais distantes do interior do país.
A pasta diz que irá propor à equipe de Bolsonaro a participação de alunos recém-formados que fazem parte do Fies (financiamento estudantil).
Com 457 cubanos, o Maranhão é o estado com o pior índice de médicos por mil habitantes: 0,87. A média do país é de 2,18 por mil habitantes.
Em seu lançamento, o Mais Médicos gerou atrito com entidades médicas devido à dispensa de revalidação de diploma para estrangeiros, contratados como intercambistas. Em 2017, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que a ausência de revalidação de diploma era constitucional.
Atualmente, o programa soma 18.240 vagas, sendo que cerca de 2.000 estão abertas, sem médicos. Do total de vagas preenchidas, 8.332 são ocupadas por médicos cubanos (em 2016, eram 11.400).
Além destas, o país tem 4.525 vagas ocupadas por brasileiros formados no Brasil, 2.824 brasileiros formados no exterior e 451 intercambistas (de outras nacionalidades).
A decisão do governo cubano foi comunicada ao ministério nesta quarta em reunião com representante da Opas no Brasil, Joaquín Molina.
Ainda não há informações de como deve ocorrer a saída dos profissionais. A previsão, porém, é que os médicos deixem o país até 31 de dezembro.
O contrato do Mais Médicos vale por três anos. Em 2016, no entanto, o governo abriu a possibilidade para renovação dos contratos a cubanos que possuem família no país.
O fim da parceria com Cuba no Mais Médicos gerou reação de entidades médicas e da Frente Nacional dos Prefeitos, que encaminhará ofício à equipe de Bolsonaro em que pede a “revisão do posicionamento do novo governo, que sinalizou mudanças drásticas nas regras do programa”.
Para o presidente do Conasems (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde), Mauro Junqueira, com a troca de governo, a ruptura com Cuba era esperada, mas não de forma antecipada.
Segundo ele, caso não haja rapidez para reposição, há risco de desassistência especialmente nas regiões Norte e Nordeste. “A ruptura é inevitável, mas precisa ter prazos. Não estamos tratando de mercadoria, estamos tratando de vidas. Cada médico fica em equipe que atende uma média de 3.400 pessoas. Se pegar 8.500 médicos, são 24 milhões de brasileiros. Não dá para retirar de um dia para o outro”, afirma.
Em setembro, a Folha mostrou que, desde o início do ano, vagas abertas após a saída de médicos ao fim dos contratos não têm sido repostas.
“Temos 1.600 vagas do programa abertas há algum tempo, e agora a possibilidade de sair mais 8.000. É possível fazer uma reposição com brasileiros? É. Mas precisa de tempo”, diz Junqueira, que lembra que os últimos três editais abertos no programa tiveram vagas preenchidas apenas com brasileiros.
“Vamos ter regiões do Brasil que vão voltar a não ter assistência médica”, afirmou o governador reeleito do Piauí, Wellington Dias (PT).
Já o Conselho Federal de Medicina informou, em nota, que o Brasil “tem médicos em número suficiente para atender a população”. Desde o lançamento do Mais Médicos, a entidade tem se posicionado de forma crítica à dispensa de revalidação do diploma.
Na mesma nota em que anunciou o fim da parceria, o governo cubano afirma que, desde a implantação do programa, 20 mil profissionais atenderam a mais de 113 milhões de brasileiros, em 3.600 municípios.
Cuba também chamou de inaceitáveis as ameaças de alterações no termo de cooperação firmado com a Opas, conforme previa Bolsonaro, e disse que o povo brasileiro saberá a quem responsabilizar pelo fim do convênio.
Encravada no sertão da Bahia, Uauá (a 428 km de Salvador) é conhecida pela carne de bode na brasa, pelo doce de umbu e pelo sotaque castelhano que ecoa em suas unidades básicas de saúde— dos 10 médicos que atendem na cidade, 8 são cubanos.
Com dez postos de saúde e cobertura a 100% de seus 27 mil habitantes, a cidade teme sofrer uma espécie de “apagão médico” com o encerramento do contrato com Cuba no programa Mais Médicos.
A situação deve se repetir em outras cidades do Nordeste, região que recebeu grande parte dos cerca de 8.500 médicos cubanos do programa.
Por ficarem em regiões isoladas e distantes dos grandes centros, os municípios têm dificuldades de contratar médicos brasileiros.
Somente na Bahia, há 846 médicos cubanos atuando em 313 municípios, o que equivale a 20% dos médicos que atuam na atenção básica. A saída deles fará com que a cobertura de atenção básica no estado caia de 63% para 43%.
“Voltaremos para um patamar de oito anos atrás. São quase 3 milhões de baianos que ficarão sem médico”, afirma Cristiano Soster, diretor de atenção básica da Secretaria de Saúde da Bahia.
Em Uauá, onde 44% da população vive na zona urbana e só 7% possui emprego formal, a maioria dos médicos atuam em áreas rurais isoladas. Os moradores dependem do atendimento de médicas como Maria Los Angeles, 46, que vive na cidade desde 2013.
Ela afirma que há poucos dias recebeu uma carta informando que o contrato seria encerrado e que retornaria para Cuba. Ela diz temer pelos seus pacientes, em sua maioria pequenos agricultores.
“Há pessoas que têm doenças crônicas como diabetes, hipertensão e precisam de atendimento continuado. Não dá para parar”, afirma.
Ela refuta os argumentos do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), de que eles estariam fazendo trabalho escravo. Ela diz que o dinheiro que recebe é suficiente para se manter no Brasil e ajudar a mãe e a filha em Cuba: “Para a gente, vale a pena”, diz.
A médica Virgínia Trejo, 49, que atende na cidade de Dias D’Ávila (a 55 km de Salvador) também lamenta o fim do contrato e os questionamentos feitos sobre a formação dos médicos cubanos.
“A gente salvou muita vida aqui”, afirma a médica, que atua há 25 anos na profissão, sendo os últimos quatro deles no Brasil. Por outro lado, Virgínia afirma que está feliz pela possibilidade de voltar para perto da família.
Já o médico Younier Rivera, 34, fará o caminho inverso. Ele atende há cinco anos em Águas Belas (a 303 km do Recife), cidade de 43 mil habitantes em que dos 12 médicos, 9 são cubanos —75% do total.
Com uma rotina que começa às 7h e se encerra somente no fim do dia, ele chega a atender 35 pacientes diariamente na zona rural da cidade.
“A aceitação do nosso trabalho é muito grande. O povo ainda não está acreditando no que aconteceu. Querem fazer um abaixo-assinado para a gente continuar”, diz.
Ele é casado com uma brasileira, tem uma filha de dois anos e ainda tinha mais um ano de contrato com o programa Mais Médicos.
Agora, ele afirma que voltará para Cuba para resolver pendências e planeja retornar ao Brasil para viver junto de sua família. “Mas volto desempregado”, lamenta.
No interior de Pernambuco desde 2013, um médico cubano de 36 anos, que pediu para não ser identificado, diz que o fim do programa é uma das páginas mais tristes da história do Brasil. Segundo ele, em conversas com outros médicos cubanos, a preocupação com o futuro do programa, que já era grande, cresceu com a eleição de Bolsonaro.
O profissional observa que o Mais Médicos deixou vínculos importantes na relação com os pacientes. Segundo ele, os médicos criaram uma ligação muito forte com a população atendida, que ele diz ver como necessitada.
Outro médico que também integra o programa disse que ainda não sabe o que vai fazer, por ter sido pego de surpresa. Após ter criado uma vida nova no Brasil, não sabe como será o futuro e o que irá fazer.
No estado de Pernambuco, há mil vagas do programa Mais Médicos. Metade delas é preenchida por profissionais cubanos. Grande parte dos médicos atua no interior. Muitos deles renovaram o contrato com o programa no início deste ano.
Fora da região Nordeste, a saída dos médicos cubanos do programa terá maior impacto em áreas indígenas e nas periferias de grandes cidades, sobretudo em regiões conflagradas, onde muitas vezes os cubanos são os únicos que se colocam à disposição para atender a população.
No estado do Rio, dos cerca de 600 profissionais do Mais Médicos, 224 são cubanos. Eles atendem em 48 municípios, incluindo áreas de risco na capital, como favelas dominadas por grupos armados.
Os médicos atendem em clínicas da família ou postos de saúde nos municípios. A expectativa é que 672.000 pessoas podem ser afetadas pela medida no estado do Rio.