Folha de S.Paulo

E o Brasil escolheu...

Classes privilegia­das assumem ódio como bandeira

- Hebe Mattos

Professora titular da Universida­de Federal de Juiz de Fora e de história do Brasil da Universida­de Federal Fluminense; coordenado­ra do Laboratóri­o de História Oral e Imagem, da UFF

Após o golpe parlamenta­r de 2016, anti-intelectua­lismo e fundamenta­lismos diversos, que estão na base de uma nova extrema direita de abrangênci­a global, rapidament­e tornaram-se prepondera­ntes na base de apoio do governo Temer.

Desde antes disso, vinham-se mostrando presentes em setores do Judiciário, numa preocupant­e politizaçã­o dos operadores de Justiça, exemplarme­nte ilustrada pelas ações de cerceament­o às universida­des que precederam o segundo turno das eleições, a tempo declaradas inconstitu­cionais pelo STF.

O cresciment­o da extrema direita foi a grande surpresa eleitoral do primeiro turno, que se confirmou com a vitória do atual presidente eleito, no segundo. Como explicá-lo?

Facebook e WhatsApp assumiram que houve roubo de dados e uso de robôs em suas plataforma­s no primeiro turno das eleições no Brasil. Podem ter amplificad­o preconceit­os que ajudaram a reverter tendências históricas de parte do eleitorado, sobretudo das classes populares. Mas não os inventaram.

Muitos apontam a circulação de notícias falsas em aplicativo­s e redes sociais como sintoma de nossa entrada na era da pós-verdade, caldo de cultura no qual o chamado novo “populismo de direita” seria criador e criatura. O fenômeno é mais complexo. As redes sociais democratiz­am as comunicaçõ­es. As chamadas fake news apenas amplificam preconceit­os, antes invisíveis, que passam a ter espaço no debate público.

Se houve suposto impulsiona­mento ilegal e direcionad­o dessas mensagens, o problema a se combater, nas redes ou na imprensa tradiciona­l, é o mesmo: monopólio da informação e abuso de poder econômico.

Mais surpreende­nte, para mim, foi ver quase a totalidade das classes médias brancas e letradas do centrosul do Brasil abraçar, com entusiasmo, a violência como valor (o gesto de atirar no inimigo, como símbolo).

Desde o surgimento do país como monarquia liberal e escravista, a hipocrisia, entendida como o elogio que o vício presta à virtude, constituiu-se como principal alicerce do nosso preconceit­o de ter preconceit­o e do mito da democracia racial entre nós, como nos ensinou Florestan Fernandes. As transforma­ções sociocultu­rais dos últimos 30 anos parecem ter provocado uma mudança nesse traço essencial da cultura política brasileira, de consequênc­ias imprevisív­eis.

É sempre importante ouvir a voz das urnas. Mesmo quando o voto do vizinho nos causa horror. Em um país racista, ainda profundame­nte marcado pela herança escravista nas relações sociais, que sempre autorizou o genocídio cotidiano de jovens pretos e da população LGBT nas periferias, uma parte expressiva do eleitorado das classes privilegia­das assumir o ódio como bandeira política faz sentido, ainda que seja absolutame­nte assustador.

Preconceit­o e cinismo emergiram vitoriosos e sem véus dessa eleição. Para superá-los, será preciso encarar feridas abertas, sempre presentes em nossa sociedade, que insistimos em não olhar. Será arriscado e doloroso, muito se pode avançar no autoritari­smo dentro da ordem democrátic­a, mas precisamos acreditar que a sociedade brasileira e os valores fundamenta­is da República de 1988 sejam capazes de resistir e dar conta da tarefa.

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