Folha de S.Paulo

Cor de carne

Destaques do Festival Mix Brasil, que começa nesta semana, o francês ‘Faca no Coração’ e o brasileiro ‘Tinta Bruta’ abordam a luta entre repressão sexual e exposição do corpo

- Guilherme Genestreti

O êxtase pulsa na mesma batida que a morte em “Faca no Coração”. No filme do francês Yann Gonzalez, um espasmo pode ser reflexo tanto das estocadas do sexo quanto das punhaladas de um assassino à espreita.

É inevitável pensar na Aids como metáfora. A trama acompanha um serial killer que seduz e mata homossexua­is, atores de certa produtora de filmes pornô na Paris do final da década de 1970.

Já “Tinta Bruta”, dos brasileiro­s Filipe Matzembach­er e Marcio Reolon, propõe a redenção do corpo. Pedro (Shico Menegat) é um jovem introverti­do que passa tintas fluorescen­tes na pele e se despe para anônimos na internet.

Em ambos os casos, repressão sexual e exposição do corpo são forças em eterno combate. Os dois longas são destaque do Mix Brasil, maior festival de cultura LGBT do país, que começa nesta quinta em São Paulo com mais de cem filmes, shows, debates e peças.

Gonzalez, que disputou a Palma de Ouro em Cannes por “Faca no Coração”, nota alguma semelhança entre o pornô gay dos anos 1970, que despontou pós-revolução sexual, e o cinema experiment­al de Warhol, que se esbaldava nas curvas de Joe Dallesandr­o.

“Vêm do mesmo tipo de pessoa, outsiders que confrontav­am a norma e viam a utopia erótica como um manifesto político”, diz, por telefone.

O cineasta de 41 anos se diz fascinado por uma dessas pioneiras, Anne-Marie Tensi, “lésbica, alcoólatra, violenta, que vivia cercada por homens gays” e que produziu dezenas de filmes adultos na França.

“Quem atuava neles eram rebeldes, jovens ‘junkies’, prostituto­s que ganhavam troco fazendo amor na frente das câmeras”, diz. “Algumas dessas obras são poéticas, melancólic­as, quase como se antevissem o pesadelo sexual da Aids.”

Tensi foi a inspiração para a protagonis­ta de “Faca no Coração”, interpreta­da por Vanessa Paradis. Enquanto a personagem rumina um pé na bunda, dado pela mulher que edita suas produções, ela continua na labuta tocando obras como “Homocida”, “Fúria Anal” e extraindo seu elenco de canteiros de obra.

Os atores desses filmes, brutamonte­s ou efebos, vão morrendo um a um, exterminad­os por um maníaco que os encontra em ‘dark rooms’ de boates e casas sadomasoqu­istas. É a senha para que o diretor despeje outra de suas referência­s estéticas, o giallo, gênero do cinema italiano marcado por muito sangue e sexo.

“O obsceno e o monstruoso são catárticos para mim”, diz Gonzalez, que cresceu vendo filmes de terror de John Carpenter, lotados de anti-heróis e criaturas desajustad­as. “Ter visto aquilo enquanto eu me entendia como gay ajudou a explorar as minhas fantasias.”

Anne, a explosiva personagem de Paradis, é uma mulher intensa, cercada por rapazes seminus que não são caracteriz­ados com a mesma complexida­de que ela —inversão dos papéis sexuais se considerad­a a tradição cinematogr­áfica.

Ela circula por ruas parisiense­s que ganham as cores azuladas e arroxeadas do néon. “Toda aquela eletricida­de é muito cinematogr­áfica”, diz o diretor, que incremento­u a sensação de perigo do roteiro enquanto marchas em prol da família e do casamento tradiciona­is tomavam a capital.

“Foi horrível ver crianças gritando palavras de ódio. Me fez pesar a mão na violência.”

O som que acompanha Anne noite adentro é o de uma trilha marcada pelo uso de sintetizad­ores —préstimo do M83, um dos grandes nomes da música eletrônica francesa e que tem no irmão de Gonzalez um de seus fundadores.

No fundo, resume o diretor, é um filme sobre “duas formas de raiva”, a que desperta da paixão frustrada e a que descamba para assassinat­os. Mais uma vez, ele traz à tona os filmes de terror a que assistiu na adolescênc­ia. “Me fizeram crer que amor tem tudo a ver com morte”, brinca.

A raiva, que permeia a obra de Gonzalez, também canalizou a criação do drama “Tinta Bruta”, segundo o gaúcho Marcio Reolon, um de seus diretores. Ele diz que a onda conservado­ra na política em anos recentes “injetou o desespero” que molda o filme.

A obra engrossa a seleção nacional do Mix Brasil, que neste ano criou uma nova seção para dar conta do aumento na inscrição de títulos brasileiro­s, segundo João Federici, curador da programaçã­o. Depois do festival, “Tinta Bruta” entra em cartaz em circuito a partir do próximo dia 6.

“O momento por que passa o país sublinhou a personalid­ade do Pedro”, conta Filipe Matzembach­er, o outro diretor, citando o protagonis­ta, que reage às afrontas. “Ele tem uma vida difícil, mas não aceita o papel de vítima.”

Quando a história começa, o personagem principal é um um rapaz solitário e sociofóbic­o que responde a um processo por ter ferido outro garoto.

Sem nenhuma conexão no mundo real, exceto a irmã que está de partida, Pedro é célebre na internet. Conhecido como GarotoNeon, ele se pinta e, no escuro do quarto, exibe sua nudez em sites por aí.

“Sua rede de afetos se desfaz, mas é pela internet que ele consegue exercer uma sexualidad­e que é cerceada”, diz Matzembach­er, de 30 anos.

A premissa tem a ver com Porto Alegre, cidade dos diretores e onde se passa a obra.

“Depois da adolescênc­ia, muita gente sai de lá e vai morar em outro lugar”, diz Reolon. “Com a distância, o contato que fica é via redes sociais. Ali, cada um filtra o que expõe e se comunica por meio de personas idealizada­s”, completa o diretor de 33 anos.

A capital gaúcha tem na trama importânci­a central, exposta em prédios cinzentos lotados de janelas alheias à violência homofóbica nas ruas.

“Tinta Bruta” estreou no Festival de Berlim, em fevereiro, e de lá saiu com o prêmio Teddy, voltado à melhor produção com temática LGBT.

O filme da dupla gaúcha foi também o grande vencedor do Festival do Rio, no último fim de semana, tendo levado os prêmios de melhor longa de ficção, roteiro, ator e ator coadjuvant­e (Bruno Fernandes).

Para interpreta­r o rapaz frágil, cheio de travas na vida real, os diretores recorreram a um DJ que acharam por acaso. “Era magro, tatuado, todo de preto e com o cabelo escorrido”, segundo Reolon descreve o iniciante Shico Menegat.

É ele quem empresta o corpo para viver o protagonis­ta reativo, oposto do estereótip­o do “pathetic queer” (o homossexua­l vitimizado de obras incensadas como “Moonlight”).

“Pedro é um personagem vulcânico”, diz Matzembach­er. “E a tinta é a lava dele.”

26º Festival Mix Brasil

De 15 a 25 de novembro, no Centro Cultural São Paulo, Cinemateca, IMS, CineSesc e SP Cine Olido. Programaçã­o completa e detalhes em mixbrasil.org.br.

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Fotos Divulgação No alto, Vanessa Paradis em cena de ‘Faca no Coração’, de Yann Gonzalez; acima, Shico Menegat em ‘Tinta Bruta’, de Filipe Matzembach­er e Marcio Reolon

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