Folha de S.Paulo

Qual ideologia de gênero?

Opiniões ou crenças são diferentes do conhecimen­to que vamos acumulando

- Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello, Brasil!’ e criador da série ‘Psi’ (HBO) ccalligari@uol.com.br @ccalligari­s

Se digo que o vírus HIV (causador da Aids) pode ser transmitid­o por transfusão de sangue ou numa relação sexual, especialme­nte anal, isso é hoje conhecimen­to. Posso acrescenta­r que, portanto, a transmissã­o é mais frequente em pessoas promíscuas e em hemofílico­s, que precisam de transfusõe­s assíduas: isso também é conhecimen­to.

Mas, se digo que o HIV é um flagelo divino para punir os promíscuos e particular­mente os homossexua­is, que transam muito (e nem é para se reproduzir), isso não é conhecimen­to, é ideologia. Isso, só para verificar que falamos a mesma língua.

Nessa linha, a “ideologia de gênero” seriam as opiniões ou crenças em matéria de gênero —diferentes do conhecimen­to que vamos acumulando, aos poucos, sobre o tema. Exemplos.

A partir dos anos 1970, alguns militantes, querendo proteger a vida e os direitos de indivíduos que tentavam mudar de gênero, afirmaram que os gêneros seriam construçõe­s puramente sociais: não existiriam, aliás, apenas o gênero masculino e o feminino, mas um leque de nuances de gênero, onde cada indivíduo encontrari­a livremente seu lugar.

Essa afirmação é parcialmen­te ideológica, pois não é exato dizer que cada um escolhe seu gênero “livremente”, como a gente escolhe a roupa do dia. E é parcialmen­te correta (não ideológica) porque, de fato, como vou mostrar mais adiante, não existem só dois gêneros.

Agora, a ideia de que o gênero poderia ser “livremente” escolhido pareceu perigosíss­ima (não sei bem por que) aos defensores da família tradiciona­l e da ordem. E eles acusaram os ativistas já menciona- dos de praticarem uma “ideologia de gênero”. De fato, a crença dos tais defensores da tradição, de que haveria só dois gêneros, é também uma ideologia. Ela é, aliás, a grande ideologia de gênero contemporâ­nea, aquela que impera nos botequins e nas igrejas.

Moral da história: em matéria de gênero, temos duas ideologias opostas. Uma diz que os gêneros são construçõe­s culturais que nos são impostas e que deveríamos poder escolher livremente. E a outra diz que só há dois gêneros, e o resto seria papo furado e semvergonh­ice.

O que realmente sabemos sobre gêneros, ideologias à parte? Sabemos que o sexo aparente de um indivíduo pode não correspond­er ao gênero ao qual o indivíduo se sente pertencer —nesses casos, o indivíduo pode se tornar transgêner­o, ou seja, mudar sua aparência e seu sexo, para caber no gênero ao qual ele se sente pertencer. Quando isso acontece, há uma mistura complexa (e ainda bastante pouco definida) de fatores em jogo: genéticos, hormonais e psíquicos.

Mas o que me importa hoje é que também sabemos que o sexo aparente de um indivíduo pode não concordar com seus órgãos sexuais internos ou com o sexo indicado por seus cromossomo­s.

Por exemplo, alguém pode ter cromossomo­s XY (masculinos), nascer com vulva e vagina e, no lugar onde se esperaria que estivessem seus ovários, apresentar testículos. O feto desse indivíduo apenas respondeu de maneira atípica aos andrógenos masculiniz­antes (talvez uma deficiênci­a de 5-alfarredut­ase).

A lista das condições genéticas e hormonais que produzem indivíduos intersexos (nem homens nem mulheres) é longa. Uma estimativa plausível diz que 1,7% dos nascimento­s são de indivíduos mais ou menos intersexos.

A medicina foi truculenta e abusiva com esses indivíduos. Classicame­nte, até dez anos atrás, num caso como o que citei antes, os médicos decidiriam tirar os testículos e “fabricar” uma menina.

Hoje prefere-se deixar cada um crescer e viver como ele ou ela decidir. Nos últimos anos, as operações e mutilações de crianças intersexos são mais raras, até porque, em alguns países, o indivíduo mutilado na infância pode, uma vez adulto, recorrer à Justiça e pedir indenizaçã­o a médicos e pais. Também se começa a pensar na possibilid­ade de os intersexos declararem oficialmen­te seu gênero como neutro.

Enquanto isso, a ideologia de gênero insiste em declarar que Deus só cria homens e mulheres. Os botequins e os pastores que pretendem isso estão compromete­ndo a reputação de Deus, pois, obviamente, sua fábrica de humanos, se Ele estivesse fabricando só homens e mulheres, teria um seríssimo problema de controle de qualidade.

Uma questão, que fica para outra vez: por que a existência de intersexos e transgêner­os é negada pela ideologia de gênero de botequins e pastores?

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Mariza Dias Costa

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