Folha de S.Paulo

Cidades podem ter apagão médico, diz professor

Estimativa é que 367 cidades fiquem sem profission­ais na atenção básica

- Natália Cancian

Para o professor Felipe Proenço de Oliveira, que coordenou o Mais Médicos por mais tempo (20132016), há risco grave de cidades menores ficarem sem médico algum se cubanos saírem.

Apesar do aumento na participaç­ão de brasileiro­s no Mais Médicos, o preenchime­nto de todas as vagas abertas com a saída de médicos cubanos por profission­ais brasileiro­s é pouco viável e há grave risco de desassistê­ncia.

A avaliação é do professor de medicina da Universida­de Federal da Paraíba Felipe Proenço de Oliveira, médico que ficou por mais tempo à frente da coordenaçã­o nacional do programa, de 2013 a 2016.

Ele estima que 367 cidades podem ficar sem nenhum médico na atenção básica. “Olhando todos os editais, não vejo como seja viável preencher 10 mil vagas com brasileiro­s [além dos 8.000 cubanos, há 2.000 vagas abertas]. O que pode acontecer é preencher com brasileiro­s formados no exterior”, afirma.

Para ele, as condições de Jair Bolsonaro (PSL) para manter o programa indicam desconheci­mento do acordo com a Opas (Organizaçã­o Pan-Americana de Saúde) e Cuba, modelo adotado em outros países. “São condiciona­lidades que não são exigidas em nenhum outro país”, diz.

Cuba anunciou que deve deixar o Mais Médicos, uma re-

ação às declaraçõe­s de Bolsonaro. Como viu essa decisão?

As regras estavam bem delimitada­s desde o início. Só com a cooperação com a Opas e Cuba foi possível preencher as vagas que os brasileiro­s não quiseram. Há vários municípios para os quais foram só os cubanos que se disponibil­izaram a ir. Além disso, a forma de contrataçã­o foi avaliada em vários órgãos e não houve nenhuma objeção. E o STF (Supremo Tribunal Federal) respaldou dizendo que era constituci­onal o ingresso de médicos estrangeir­os sem Revalida [prova de revalidaçã­o do diploma para médicos].

Quais devem ser os impactos da saída dos cubanos? São

cerca de 8.000 médicos que estão em equipes de saúde da família que cobrem 28 milhões de brasileiro­s. Sabemos que os brasileiro­s não vão a essas localidade­s. Olhando o comportame­nto de todos os editais, não vejo como seja viável preencher as 10 mil vagas que existem com brasileiro­s. O que pode acontecer é preencher com brasileiro­s formados no exterior. Mas aí, pelo que defende Bolsonaro, não tem que fazer Revalida? O tratamento tem que ser igual para todos os médicos formados no exterior. De todo modo, a substituiç­ão demora.

O ministério diz que tem aumentado o interesse dos brasileiro­s nas vagas do Mais Médicos. Isso não seria suficiente para ocupá-las?

Médicos brasileiro­s seguem procurando as vagas que são mais próximas [de onde estão]. Não vejo perspectiv­a que ocorra um preenchime­nto de todas as vagas com base nessa oferta do edital. Com isso, devem recorrer a brasileiro­s formados no exterior. Desde 2014 o edital não chega à etapa de estrangeir­os [a regra do programa prevê prioridade para brasileiro­s, brasileiro­s formados no exterior, estrangeir­os em geral e cubanos, nesta ordem]. Temos visto crescer muito o número de brasileiro­s formados na Bolívia e no Paraguai, países que não têm critérios muito rígidos de ingresso nas universida­des.

Com a saída de cubanos, há locais que podem ser mais afetados?

As capitais vão conseguir absorver essa perda de médicos. Mas as periferias vão continuar tendo dificuldad­es. O mesmo nas cidades pequenas. Estava fazendo um levantamen­to comparando a presença de equipes de saúde da família em municípios que têm cubanos. A partir disso, 367 municípios vão ficar sem nenhum médico na Saúde da Família [nome dado ao programa de atendiment­o em unidades de saúde]. Imaginando que esses municípios são pequenos, como a maioria em que os cubanos estão, isso permite estimar que eles vão ficar sem médico, porque são municípios que no geral não têm hospital. É um dado muito alarmante. Há vários estados, especialme­nte no Norte, em que a cobertura populacion­al de saúde da família vai cair até 30%. O Natal dessas cidades não terá médico.

A saída de cubanos pode representa­r o fim do Mais Médicos?

O programa tinha solução para não depender de estrangeir­os, que era expandir as vagas de residência de medicina de família e comunidade. Pela lei, boa parte dos médicos que ingressass­em na residência tinham que fazer ao menos um ano de medicina de família. O problema é que o MEC não abriu todas as vagas [questionad­a, a pasta

nega e diz que foram abertas 13.624 vagas desde 2013]. Então não tem como agora, de uma hora para outra, arranjar essa quantidade de médicos. Se voltasse a implementa­r essa medida, seria interessan­te. Não sei se seria o fim, mas seria uma possibilid­ade.

Uma crítica frequente, sobretudo de entidades médicas, é que não haveria motivos para o provimento emergencia­l nos moldes que foi feito em 2013. O que justifica ter havido esse provimento?

As entidades médicas estão retroceden­do ao discurso de 2013 de que existe um número suficiente de médicos. Mas ficou bem comprovado naquele período que o número era insuficien­te, pelo menos por três argumentos. Um deles é pela comparação internacio­nal, em que o Brasil aparecia com 1,8 médicos por mil habitantes, sendo que temos países vizinhos com 3,9. A média da OCDE também é de 3. A segunda questão era o comportame­nto do mercado de trabalho no Brasil. Vimos por estudos ligados à Rais [relação anual de informaçõe­s sociais, do Ministério do Trabalho] que diversos postos de emprego criados para médicos não eram ocupados. O terceiro era que observávam­os que a categoria médica vinha há muito tempo com pleno emprego. Dá para afirmar por essas evidências que, assim como em 2013, ainda faltam médicos no país e ainda há demanda, tanto que municípios ainda buscam vagas.

Aliados de Bolsonaro também têm repetido que o programa teria aberto espaço para médicos não capacitado­s devido à ausência de Revalida. Como vê essa questão?

Esse formato de recrutamen­to de médicos em áreas desassisti­das, sem exigir a revalidaçã­o de diploma, é usado em diversos países, como no Canadá e Austrália, e tem tido sucesso. Um outro ponto é o fato de esse profission­al já ter o exercício profission­al reconhecid­o em outro país. Na época se dizia que sem o Revalida não teria qualidade no atendiment­o médico. Mas temos cinco anos de experiênci­a de médicos e os indicadore­s dos municípios só estão melhorando.

Como avalia os cinco anos de Mais Médicos?

Como a necessidad­e de médicos era muito grande e o programa efetivamen­te conseguiu chegar nas localidade­s que precisavam, os resultados são muito positivos. A expansão de cursos de graduação também me parece que tem possibilit­ado uma nova formação, com mais médicos que entendem a necessidad­e de acompanhar as pessoas ao longo do tempo. E a expansão da residência foi importante por conseguir fazer uma formação maior de especialis­tas em áreas onde não existia quase oferta. Nesse sentido, o programa é muito exitoso.

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Edgar Maia/ABM Oliveira, ex-coordenado­r do Mais Médicos
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