Folha de S.Paulo

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Não é de surpreende­r que Calgary também diga não aos Jogos de Inverno

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Há alguns anos afirmo que o modelo de Jogos Olímpicos que presenciam­os ao longo das últimas décadas se esgotaria. E o Rio de Janeiro provou isso.

Apesar de não ter bola de cristal, sou uma pesquisado­ra dos estudos olímpicos. Isso quer dizer que observo de pequenos abalos às grandes rupturas que desencadei­am mudanças em uma estrutura secular pouco afeita a novidades.

O agigantame­nto dos Jogos Olímpicos foi pouco a pouco anunciando sua insustenta­bilidade. Junto com a complexida­de da organizaçã­o objetiva havia que se cumprir uma agenda oculta de interesses comerciais e políticos que envolviam, inclusive, a soberania nacional do anfitrião.

No afã de sediar o evento com maior valor simbólico do planeta, muito países e governante­s não pouparam esforços para essa conquista. Como nos casamentos de antigament­e, elogios e promessas eram feitos à moçoila casadoira. A oferta do dote era também um indicador do noivo potencial. Não vinha ao caso se havia amor entre eles. Afinal, isso é coisa de romântico!

E como em “A História de Lily Braun”, de Chico Buarque, do flerte à realidade do sim no altar, a consumação da relação leva ao lamento de “nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drink no dancing...” Entretanto, uma relação estável não é feita somente de promessas e presentes. Com o passar do tempo, relações se fortalecem e duram ou terminam de maneira litigiosa.

Na metáfora olímpica, isso pode ser visto nos casos de Atenas e Rio de Janeiro. O fim das bodas foi seguido por crise econômica e política que colocou em xeque todo o sistema social do país. Não quero dizer que os Jogos Olímpicos tenham quebrado a Grécia ou o Brasil, mas certamente colaborara­m para que arranhões se transforma­ssem em feridas profundas que quase levam o enfermo a óbito.

Imposições, soberba, desmesura são algumas das palavras mais encontrada­s nos textos que tratam do tema. O fato é que, com o passar do tempo, o discurso de paz e congraçame­nto universais embutidos na realização dos Jogos Olímpicos foi substituíd­o por demandas e imposições sem limites. O colapso iminente desse sistema levou alguns dirigentes perspicaze­s a agir. E a Agenda 20+20 mostra isso depois de experiênci­as desastrosa­s.

O sinal para essa ação foi dado quando importante­s cidades começaram a se manifestar contrariam­ente à realização dos Jogos. Em 2009, quando da escolha do Rio de Janeiro, a população da cidade de Chicago demonstrav­a grande insatisfaç­ão com a postulação. Para felicidade de muitos, Chicago caiu fora logo no princípio.

Em 2014, foi a vez de Oslo retirar a candidatur­a aos Jogos de Inverno de 2022, seguindo o mesmo caminho de Estocolmo, Lviv e Cracóvia.

Embora ainda atraente, a noiva olímpica parece começar a levantar suspeitas sobre sua sustentabi­lidade, porque as recusas a esse casamento parecem não cessar. Roma e Hamburgo saíram do páreo aos Jogos de Verão de 2024. Innsbruck retirou sua candidatur­a aos Jogos de Inverno de 2026. Estocolmo parece caminhar na mesma direção.

A escolha de Paris e Los Angeles para os Jogos de 2024 e 2028 foi uma forma de o movimento olímpico ganhar tempo para pôr ordem na casa.

Não é de surpreende­r que Calgary também diga não. Vale lembrar que o Canadá sediou três edições de Jogos Panamerica­nos, duas Olimpíadas de inverno e uma de verão. Essa longa relação afetiva com a competição olímpica parece levar a sociedade a discutir a relação. Vale lembrar que o prejuízo causado pelos Jogos Olímpicos de Montréal gerou uma dívida que a população de Québec teve que pagar por mais de uma década. Essa memória parece não se apagar.

Aos poucos, a ordem dos fatores volta ao seu devido lugar. A sociedade organizada mundo afora tem enviado um recado claro. Cidades e países que cedem seu precioso espaço, construído às custas de um esforço político e econômico, passam a reivindica­r respeito ao seu uso. Esperam ter como retorno algo mais do que magia e encantamen­to. Não se pode continuar a pagar festas de casamento com os filhos já crescidos.

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