Folha de S.Paulo

O evangelho segundo MCs

Clássico do rap organizado como uma espécie de culto, ‘Sobreviven­do no Inferno’ tem letras editadas em livro para alunos se prepararem para o vestibular da Unicamp

- Rafael Gregorio Fotos Klaus Mitteldorf/Divulgação

Disco dos Racionais MCs é incluído na lista de leituras obrigatóri­as da Unicamp em 2019, vira livro e enseja discussão sobre o que é literatura essencial.

Esse disco é um objeto cultural incontorná­vel. Da mesma forma como você deve ler Machado de Assis, tem que conhecer Racionais Acauam Silvério de Oliveira, professor de literatura brasileira

Quem nos últimos 21 anos ignorou as rimas dos Racionais MC’s em “Sobreviven­do no Inferno” (1997) terá uma nova chance —o clássico do rap nacional virou livro.

“É só natural: os Racionais são um dos maiores acontecime­ntos da cultura brasileira recente”, diz Ricardo Teperman, editor da Companhia das Letras e um dos responsáve­is pela publicação. O grupo é o maior nome do rap no Brasil, formado em 1987 por Mano Brown e Ice Blue, da periferia da zona sul paulistana, e Edi Rock e KL Jay, da zona norte.

No livro, ganharam ar de poemas letras como a da canção “Capítulo 4, Versículo 3”, dos versos “Tem uns quinze dias vi o mano/ Cê tem que ver, pedindo cigarro pros tiozinho no ponto/ Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto/ Agora não oferece mais perigo/ Viciado, doente, fudido, inofensivo”.

Mais do que isso, as rimas do grupo têm seu status de objeto acadêmico consolidad­o em texto que precede a obra.

Em sua introdução, Acauam Silvério de Oliveira, professor de literatura brasileira na Universida­de de Pernambuco que estudou o grupo em doutorado na USP, traça análises como a que associa a estrutura do álbum a uma liturgia — parte do conceito do grupo à época, refletido nas imagens de divulgação do trabalho.

“O ‘Sobreviven­do no Inferno’ é organizado e pensado como uma espécie de culto. Tem a introdução, com cânticos de louvor, a leitura da Gênesis, a apresentaç­ão do pastor e os relatos de testemunho­s. Depois vêm o grande relato, a atuação do diabo, e, no fim, um processo de reflexão.”

A edição teve colaboraçã­o de Eliane Dias, produtora da banda —ainda hoje a 67ª atração mais ouvida do Brasil no YouTube— e mulher de Brown. A obra identifica qual dos Racionais canta cada parte, “como num roteiro de cinema”, e descreve certas intervençõ­es como tiros, sirenes e rádios.

“Outro norte foi não custar mais que R$ 34,90. Também fiz questão de imprimir com corte dourado”, diz Teperman, sobre o brilho das páginas do livro fechado, que lembra uma Bíblia.

A iniciativa da editora veio após a Unicamp incluir o disco na sua lista de leituras obrigatóri­as para 2019 —ou seja, ainda não vale para a prova deste domingo (18).

O ensaísta Francisco Bosco, por exemplo, liga o reconhecim­ento dos Racionais à ascensão de debates identitári­os.

Já para o sociólogo Tiaraju D’Andrea, a obra cunhou um conceito de orgulho. “Periferia passou a designar não apenas pobreza e violência, mas também cultura e potência.”

“Esse disco é um objeto cultural incontorná­vel. Explicou os dramas da periferia, e muitos brasileiro­s negros aprenderam a se reconhecer ouvindo Racionais”, afirma Oliveira.

“Além do realismo, há uma estrutura metafórica. O objetivo do rap, afinal, é agregar conselhos para manter os ouvintes vivos”, diz o acadêmico.

A Unicamp ladeou o disco a Luís de Camões e Ana Cristina César na categoria poesia da lista de leituras —a tempo de as escolas ensinarem-no por dois anos, conta José Alves de Freitas Neto, coordenado­r do vestibular da Unicamp.

A premissa, diz Neto, é que os alunos acessem perspectiv­as variadas e rompam a fronteira dos cânones tradiciona­is. “Não queremos só bons arquitetos, engenheiro­s, médicos, mas cidadãos com empatia.”

A resposta vem sendo positiva entre os alunos, ele afirma.

Professora de literatura e redação no Cursinho da Poli, para alunos de baixa renda, Eva Albuquerqu­e confirma a impressão e diz que o disco “enriquece até o estudo de Camões”, pois “ajuda a compreende­r o ritmo dos versos”.

A inclusão do disco na lista da universida­de gerou críticas —embora mais nas redes sociais que na academia.

Uma delas veio de Guilherme Voitch, correspond­ente da revista Veja em Curitiba. Ele publicou no jornal Gazeta do Povo o artigo “Racionais Nunca Será Shakespear­e”. “A Unicamp está trazendo um disco”, escreve Voitch, “não por seus méritos literários. A educação clássica já perdeu”.

À Folha, ele afirma que o título original de seu texto era “Racionais MC’s: o Cânone Brasileiro”, e que acha o disco “muito bom e importante”.

“Meu ponto”, diz, “é que não deveria ser cobrado na prova. A gente deve forçar os jovens a ir além das referência­s fáceis”.

Já na internet, o debate foi bem menos intelectua­lizado.

“Em primeiro lugar, o que acho de Racionais: uma bosta, lixo, poluição sonora, não é música”, disse em um vídeo Arthur Moledo do Val, do canal de YouTube Mamãe, Falei —eleito deputado estadual em São Paulo, pelo DEM.

“Agora a Unicamp, paga com nosso dinheiro, decidiu colocar os Racionais. O cara que vai fazer medicina, engenharia, vai ter que estudar isso.”

Ele então descreve a faixa “Qual Mentira Vou Acreditar”, dos versos “Me formei suspeito profission­al/ Bacharel pósgraduad­o em tomar geral”.

“‘Tomar geral’, pra quem não entendeu, é assaltar”, diz.

Entre os seguidores, porém, a reação foi de repúdio. O vídeo tem mais “descurtida­s” que curtidas, e os comentário­s o acusam de preconceit­o —“tomar geral” significa ser revistado pela polícia. Ele não respondeu aos contatos.

Neto, da comissão da Unicamp, destaca que não houve questionam­entos do governo estadual, ao qual a universida­de está vinculada pela pasta de Ciência e Tecnologia.

Sérgio Sá Leitão, atual ministro da Cultura e indicado por João Doria (PSDB) à secretaria estadual da Cultura em 2019, foi na mesma linha. “Não li o livro, só conheço o álbum, mas as universida­des têm autonomia acadêmica. Devem ser respeitada­s.”

Entre quem vivencia a realidade narrada pelos Racionais, a exaltação do álbum como objeto de estudo é unânime.

“Por causa dele muita gente se graduou em autoestima e não entrou para a faculdade do crime”, diz Sérgio Vaz, fundador da Cooperifa. “Meus professore­s de história foram os Racionais MC’s”, resume o cantor Rael, que iniciou a sua carreira no rap.

Sobreviven­do no Inferno

Racionais MC’s. Introdução: Acauam Silvério de Oliveira. Ed. Companhia das Letras. R$ 34,90 (144 págs.)

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Detalhe de foto que integra o livro ‘Sobreviven­do no Inferno’, em que KL Jay, um dos membros dos Racionais MC’s, segura uma Bíblia
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Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue em 1997, em retrato no livro

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