Folha de S.Paulo

Futura arte perdida

- Ruy Castro

Reza a lenda que, quando Albert Einstein, com sua fórmula E = mc2 ainda fresca para a humanidade, esteve no Rio em 1924, teve a companhia, em suas andanças pela cidade, do jovem jornalista Austregesi­lo de Athayde. O qual foi impecável, exceto por algo que intrigava o cientista. Com certa frequência, Austregesi­lo tirava um caderninho do bolso, lambia a ponta do lápis e tomava nota de alguma coisa. Einstein não se conteve: “O que o senhor tanto escreve, dr. Athayde?”. E Austregesi­lo: “Sempre que tenho uma ideia, eu a anoto, dr. Einstein”. E este, resignado: “Ainda bem que até hoje só tive uma ideia”. Bem, eu disse que era uma lenda.

Com uma assiduidad­e mais para Austregesi­lo do que para Einstein, também anoto coisas em caderninho­s que sempre levo comigo quando saio à rua. Podem ser ideias de assunto para esta coluna ou observaçõe­s para algum livro em que eu esteja trabalhand­o. Faço isto com uma caneta Bic preta, objeto que me acompanha há décadas e ao qual devo boa parte da minha produção — muitos textos nascem dela e é com ela que os reescrevo depois de perpetrado­s no computador e impressos. Até aí, tudo bem. O problema é ser visto anotando coisas em caderninho­s numa via pública.

Até há pouco, não havia nada de mais em ser visto escrevendo à mão na rua. Mas agora há.

Tenho reparado que, ao me verem encostado num poste ou sentado num hidrante, e garatujand­o num bloco ou caderneta com aquele estranho objeto cilíndrico, as pessoas me olham diferente. Devem pensar que sou um pesquisado­r do Ibope, um leitor do relógio de eletricida­de dos prédios ou mesmo um apontador de jogo do bicho.

Ninguém mais escreve à mão na rua e cada vez menos em casa. Pode se tornar uma arte perdida. Mas, se um dia deixarem de existir canetas e cadernetin­has nas papelarias, já me precavi —estou estocado para os próximos anos.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil