Folha de S.Paulo

O Estado Bentinho

Operação contra Joesley mina colaboraçã­o premiada

- Pierpaolo Cruz Bottini e André Callegari Professor de direito penal da USP e advogado de executivos da J&F Criminalis­ta, professor de direito penal no IDP-Brasília e advogado de Joesley Batista

Às 6h do último dia 9, agentes policiais entraram na casa de Joesley Batista e de outros executivos da J&F, anunciando sua prisão temporária. Não foi apenas uma ação contra os empresário­s —foi um ato que abalou o próprio instituto da colaboraçã­o premiada.

Segundo os responsáve­is pela ação, Joesley teria omitido informaçõe­s em seu acordo com a Justiça, deixado de relatar atos de corrupção existentes no Ministério da Agricultur­a. Daí o nome dado à operação – Capitu, uma alusão à célebre personagem de Machado de Assis suspeita de trair seu marido Bentinho.

A referência talvez revele algo do inconscien­te institucio­nal. O romance machadiano trata mais da paranoia do esposo do que da efetiva traição de Capitu —cuja existência jamais foi provada. Isso diz muito sobre a prisão em questão.

No inicio de 2017 Joesley Batista e outros colaborado­res da J&F relataram o sistema de corrupção no Ministério da Agricultur­a à Procurador­ia-Geral da República.

Juntaram documentos, planilhas, notas de pagamento e até uma gravação entre os envolvidos. Comparecer­am sempre que convocados, prestaram inúmeros depoimento­s e esclarecer­am todas as dúvidas dos investigad­ores.

Tais fatos nunca chegariam ao conhecimen­to das autoridade­s sem a colaboraçã­o dos executivos. Nada deixou de ser relatado, exposto, detalhado.

De repente, essas mesmas autoridade­s alegaram omissões e usaram documentos e depoimento­s dos colaborado­res para pedir sua prisão. O Estado que pactuou um acordo, que ofereceu benefícios em troca de informaçõe­s, de súbito se transformo­u no algoz daquele que cooperou.

A prisão foi revogada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Em primeiro lugar, ainda que existissem fatos ocultados, o STF (Supremo Tribunal Federal) já decidiu que isso não pode justificar a prisão de colaborado­res. No máximo a rescisão do acordo e o cancelamen­to dos benefícios.

Em segundo, não houve omissão. Todos os fatos levantados pela polícia tiveram por base as declaraçõe­s dos empresário­s. Por mais que se revire o inquérito, nada indica qualquer sonegação de informaçõe­s da parte de Joesley Batista.

Ao contrário, revela que sua cooperação foi fundamenta­l para a descoberta dos ilícitos.

A decisão pela colaboraçã­o é difícil. É um processo delicado, que envolve aspectos pessoais, profission­ais e morais. A pessoa se expõe, rompe relações, altera drasticame­nte seu modo de vida. Se o poder público oferece um benefício por isso e propõe um pacto, suas cláusulas devem ser respeitada­s, garantidas, cumpridas.

Um habeas corpus soltou Joesley dois dias depois. Mas não salvou a colaboraçã­o premiada da inseguranç­a jurídica. O uso de informaçõe­s prestadas contra o colaborado­r, a imputação de omissões inexistent­es para fundamenta­r sua prisão, a divulgação de dados incorretos —nada disso se espera de um Estado que reconhece na colaboraçã­o um importante instrument­o de investigaç­ão.

Bentinho, com sua desconfian­ça infundada e desassocia­da do factual, funciona na ficção. No mundo real, porém, agir como a personagem cismada de Machado não ajudará o Estado a consolidar um instituto calcado na lealdade entre o colaborado­r e o poder público.

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Cesar Habert Paciornik

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