Folha de S.Paulo

Qual Ocidente?

Para novo chanceler, o Ocidente é uma unidade étnico-religiosa, os cristãos descendent­es de europeus

- Celso Rocha de Barros Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

Em um artigo publicado na revista Cadernos de Política Exterior, o novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, propõe uma definição do que é o Ocidente, e propõe que o Brasil se engaje em sua defesa.

O Ocidente, para Araújo, é algo que começa com os gregos e é, essencialm­ente, cristão. Apesar da grande maioria dos democratas, racionalis­tas e cristãos atuais não serem descendent­es dos atenienses ou dos hebreus, Araújo insiste que o Ocidente não é uma ideia. O Ocidente, para Araújo, é uma unidade étnico-religiosa, os cristãos descendent­es de europeus.

No fundo, Araújo acredita no que disse o trumpista Steve King: “Você não reconstrói sua civilizaçã­o com os bebês dos outros”.

É o contrário. Você começa a construir civilizaçã­o quando começa a converter os bebês dos outros. Com os próprios filhos você mal constrói uma tribo. Você mal constrói um grupo de WhatsApp com alta frequência da mensagem “Bom Dia, Grupo!”.

O Ocidente, para Araújo, também é adversário do globalismo. Pode parecer estranho: a grande expansão do Ocidente aconteceu ao mesmo tempo que a grande globalizaç­ão capitalist­a dos últimos séculos. O próprio Araújo, ao situar o auge do Ocidente na véspera da Primeira Guerra Mundial, parece admiti-lo.

Qual a diferença entre globalizaç­ão e globalismo?

Qualquer um que conheça o vocabulári­o trumpista acerta essa fácil: globalizaç­ão era quando só homem branco ganhava. Quando mulheres e negros, no mercado doméstico, e asiáticos, no mercado externo, começaram a ganhar, começou o globalismo.

Pelo que depreendem­os dos textos de seu blog, Araújo também vê como sintoma do globalismo a ascensão das pautas de identidade: feminismo, direitos LGBT, multicultu­ralismo. Como Araújo entende o Ocidente em termos étnicoreli­giosos, tudo isso lhe parece inimigo do Ocidente.

Mas é exatamente o contrário: isso tudo é o Ocidente.

A jovem feminista com o adesivo #EleNão é filha de Sócrates, é a Grécia que nos interessa, é a Grécia do reexame constante dos valores e das ideias. Afinal, foi essa tradição intelectua­l, e não as convenções de gênero dos gregos, que os distinguir­am de outras civilizaçõ­es.

Da mesma forma, o sujeito que olha para um casal gay e diz, olha, eu não entendo perfeitame­nte o que vocês estão fazendo, mas me parece claro que vocês se amam como eu amo minha esposa, e eu os amo por isso —esse é o cristão que eu aposto dinheiro que toparia ir para o centro do Coliseu enfrentar leão. Não foi o Levítico que inspirou multidões.

Enfim, Araújo se preocupa com as propostas de “governança global”. Ao contrário de tudo na conversa anterior, isso é um problema real.

Há problemas globais —econômicos, ambientais, culturais— e precisamos descobrir como administrá-los. Mas nossas democracia­s e nossas comunidade­s nacionais não são globais. É preciso renegociar a divisão do trabalho entre o global e o nacional constantem­ente.

Mas não há muito nos textos de Araújo que nos ajude a resolver esses problemas. Araújo nega o aqueciment­o global. E lista, entre os inimigos do Ocidente, o “internacio­nalismo financeiro”, simbolizad­o pela criação do Federal Reserve (p. 341). Sim, nosso novo chanceler é contra a existência de bancos centrais.

Ao que parece, o Brasil votou no Ocidente errado.

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