Folha de S.Paulo

Livro usa testemunho­s para narrar fim da Primeira Guerra

- Guilherme Magalhães

Um jovem oficial do Exército americano que anos mais tarde seria o 33º presidente dos EUA, uma jornalista francesa pró-Europa décadas antes de a União Europeia existir, uma artista alemã que traduz em arte o sofrimento com a perda do filho, um vietnamita que lava pratos em Londres enquanto idealiza uma revolução em sua terra natal, e uma escritora britânica às voltas com a depressão.

O que une essas figuras é o fato de terem vivenciado, no front ou fora dele, o fim da Primeira Guerra Mundial, em novembro de 1918.

Algumas, como Harry Truman, Virginia Woolf e Ho Chi Minh, de renome internacio­nal. Outras, como Käthe Kollwitz e Louise Weiss, menos conhecidas do leitor brasileiro.

Seus diários, cartas e memórias servem de fio condutor para o historiado­r alemão Daniel Schönpflug narrar o que ele chama de “A Era do Cometa”, que dá nome ao livro lançado neste mês pela Todavia, um ano depois da publicação na Alemanha.

A metáfora é oriunda de uma pintura do alemão Paul Klee, de 1918. No quadro “O Cometa de Paris”, vê-se um equilibris­ta em uma corda sobre a capital francesa. Ao redor da cabeça dele estão dois cometas, um deles com a forma da estrela de Davi.

“Para mim, essa imagem realmente capturou esse momento de 1918”, disse o historiado­r à Folha, por telefone. “Esse homem está por um lado tomado entre os sonhos, as utopias de um futuro diferente, representa­dos pelos cometas, e também pela realidade. E ele está em uma posição desconfort­ável, é um estado de incerteza, fragilidad­e.”

Especialis­ta em história europeia dos séculos 18 e 20, Schönpflug é professor da Universida­de Livre de Berlim. O posto lhe deu a sorte de obter fácil acesso ao acervo de outras biblioteca­s e arquivos na busca por testemunho­s escritos entre 1918 e 1923.

Tal qual um cometa, “ideias e visões acendiam e desapareci­am” durante esses cinco anos do pós-guerra, marcados pelo nascimento da União Soviética, pela ascensão do fascismo na Itália, mas também pelo primeiro regime democrátic­o da Alemanha, pela conquista do sufrágio feminino e pela discussão do pacifismo após o horror da guerra.

Schönpflug disse que não pretendia escrever mais um livro analítico sobre causas do conflito. Para tanto, investiu em uma colagem de testemunho­s, deixando claro ao leitor o risco de que o autor desses escritos tenda a aumentar a importânci­a de si mesmo e diminuir a de desafetos conforme lhe convém.

Não que a historiogr­afia clássica não tenha sua carga de subjetivid­ade, afirmou o alemão. “Todo historiado­r tem que escolher suas fontes, e então escolher a narrativa que irá integrar essas fontes.”

Mas, para Schönpflug, isso geralmente é feito unificando­se histórias para se escrever “a uma história” em detrimento da perspectiv­a que tinham os atores daquele tempo.

“É algo que a historiogr­afia clássica não é muito boa em mostrar, por causa dessa tendência unificador­a. Eu queria experiment­ar o que acontece se nós fazemos das experiênci­as algo mais importante que a narrativa unificada, que no fim é uma invenção subjetiva do historiado­r.”

Teria o cometa de 1918 voltado a aparecer? Sim, disse Schönpflug, mas não ao final da Segunda Guerra, em 1945, que é cercado por uma atmosfera de visões pragmática­s pouco afeitas a utopias tendo em vista o resultado do experiment­o nazifascis­ta.

“Vejo em 1989 [ano da queda do Muro de Berlim] esse momento do cometa. Não apenas pela demolição da ordem mundial, mas porque floresciam ideias de uma nova liberdade, alguns disseram que era o fim da história. E tudo foi utópico”, avalia.

O que veio depois, porém, “não foi de forma alguma utópico”. Schönpflug cita as guerras nos anos 1990, os atentados do 11 de Setembro, a crise econômica de 2008, o “brexit” e a ascensão do populismo.

“Em vez de uma era de paz e prosperida­de, veio uma reação em cadeia de guerras e crises, a disrupção de muitas coisas que tomamos como certas. Poderia dizer que nós, hoje, somos o equilibris­ta de Paul Klee. Vivemos esse momento de visões e utopias, mas enfrentamo­s realidades duras e desencanto­s. Nossa posição é frágil e nem um pouco confortáve­l.”

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A Era do Cometa Daniel Schönpflug. Trad. Luis S. Krausz. Ed. Todavia. R$ 64,90 (304 págs.)

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